Sonhei com meu avô uma noite dessas.
Eu estava em pé em um espaço que parecia bastante com o esconderijo do V, do quadrinho/fime V de Vingança. O requinte e o bom gosto da decoração e iluminação estavam mesclados ao rústico das paredes de rocha. Belos quadros ornavam as laterais e tapetes cobriam o chão. A mobília tinha muita madeira maciça aparente e almofadas de veludo azul escuro. Abajures dispersavam e quebravam a luz, deixando o ambiente livre de sombras sem afogar os olhos na claridade.
Ele estava sentado bem no centro do espaço, em uma cadeira também de madeira, muito bem entalhada. De pernas totalmente cruzadas (como mulher cruza, diriam os imbecis), seu joelho de cima servia de apoio para o braço esquerdo. Sobre este, o cotovelo direito repousava sem pressioná-lo e a mão direita apoiava sua cabeça reclinada enquanto os dedos da mesma mão seguravam um cigarro aceso. Uma música suave preenchia o ar.
Vestia um terno cinza escuro risca de giz de corte reto, mesmo tecido da calça social. Camisa branca, gravata preta fina e sapato social impecavelmente engraxado. Os cabelos crespos eram da cor da roupa e estavam penteados para trás com esmero. Um belo senhor negro.
“Senta.”, ele falou, sem eu ter tempo de perceber se pedia ou se ordenava. De qualquer forma, obedeci sem problemas. “Quer um cigarro? Quando você era menor eu não podia te oferecer…”. Tudo isso ele fez sem se mexer, enquanto eu tomava assento a sua frente.
Fiz um não com a cabeça e agradeci. Emendei um “Bença, vô”, como era de costume quando ele estava vivo, pelo que a resposta começou de forma gestual: ele levantou a cabeça e me olhou. O resto do corpo permaneceu na mesma posição. Alguns segundos depois, replicou: “Uai, mas você não diz por aí que é ateu?”. Breve pausa e “Deus abençoe” foi ouvido até a cabeça voltar a se apoiar na mão, não sem antes tomar mais um trago do fumo.
Eu estava inerte, anestesiado com tudo aquilo. Fiquei observando o lugar por um tempo e depois foquei meus olhos em meu avô. Bateu uma ponta de saudade do velho. Tudo ali soava melancólico.
“Percebi que você tem andado triste.” Mais um trago e de volta à posição de repouso. “Eu te entendo. Sei como é.” Sem que eu me desse conta, um calor tomou conta do meu corpo e duas pocinhas se formaram na base dos meus olhos. “Pra mim, a vida é um mar de tristezas com ilhas de felicidade. Sua mãe e seus tios nascendo, por exemplo, são algumas dessas ilhas. Sua avó aceitando casar comigo, outra. E a gente segue navegando, às vezes até nadando na ressaca da maré, de um porto a outro, até a ilha se desfazer no tempo e nos pôr na água novamente.”
“Mas a tristeza não é igual a dor. A dor está contida nela, mas não é ela no todo. A tristeza é a solidão de caminhar de Mendanha a Diamantina sozinho, perdido nos próprios pensamentos, com um pouco de fome por ter saído de casa só com um pãozinho na barriga. A dor é a palma-do-inferno que eu pegava pra comer, depois de tirar os espinhos, quando a barriga roncava porque já tinha dado conta do pão e pedia mais coisa. O que a gente tem que fazer é comer um pouquinho mais antes de sair de casa, pra ficar triste sem dor.”
“Eu nasci preto, pobre, de família humilde. Não tive vida fácil. E aprendi assim a conviver com a tristeza, espantando a dor. Por sua avó, deixei a polícia. Ela foi o pãozinho a mais que me fez tomar a decisão triste de deixar a farda.”
Essa hora, ele já olhava para mim, enquanto apagava o cigarro no cinzeiro, assoprando a última nuvem de tabaco e nicotina no ar.
“Acho que vocês pegaram um pouco disso de mim, sabe? Sua mãe, a Penha… Eu precisei morrer para aprender a falar pra vocês como se é capaz de viver triste. O que a gente tem que fazer é ter fé em Deus, ou se agarrar no que você quiser, já que inventou essa moda de ateu aí, fé em Deus e paciência. Não perder a cabeça. Queimar os problemas na ponta de um cigarro e soprá-los para cima. E aproveitar cada ilha com tudo o que ela tem a oferecer, antes de ter que botar o barco na água de novo.”
“Já trouxe um bocado de gente aqui pra conversar, e você não vai ser o último. Quero fazer o que puder do lado de cá pra contar o que eu não fui capaz quando estava do lado de lá.” Ele pegou no bolso o maço de cigarros e ficou com ele na mão, sem retirar nenhum de dentro.
“Eu gosto de ficar triste sozinho. Mas não é assim que você precisa fazer. Ache sua forma de abraçar a tristeza sem dor. Se quiser, faça como eu: senta, toma um trago, dá um tempo que a próxima ilha já deve estar à vista”. Ele sacou um bastão branco do maço. “Hora de acordar, menino. Deita aí no tapete, fecha os olhos e relaxa.”
Antes de seguir as instruções de meu avô, levantei-me chorando e lhe dei um abraço forte. Ele retribuiu com seus braços magros e pontudos, sem se levantar. “Bença, vô”, “Deus abençoe”. Me deitei e a última coisa que ouvi foi o barulho do isqueiro estalando ao ser aceso.