Risos ecoavam pelo salão enorme, de decoração contemporânea e cheio de luz. Em seu espaço amplo, uma mesa retangular de cantos arredondados estava posta para a refeição: cinco pratos quadrados brancos, com uma fina linha roxa na borda. Fotografias ocupavam as paredes exibindo cenas hilárias ou apenas momentos bons, sorrisos sendo a constante em todas elas. A iluminação era feita pelo próprio sol, uma vez que o salão não tinha teto, mas o calor excessivo que o astro emana quando incide diretamente não adentrava o recinto.

O dono da risada era Alegria, que saudava a chegada em seu palácio de sua irmã mais nova, Tristeza. Alegria, assim como seus irmãos, pode assumir a aparência que quiser, mas nos últimos séculos tem gostado do corpo mediano e largo que ostentava naquele dia. Sem parecer gordo, tampouco magro, sua constituição era de um bom apreciador de comida, com a barriga pronunciada ornando com o resto do corpo: pernas e braços fortes e roliços, rosto redondo, barba de dois dias sem fazer, cabelos curtos e levemente calvo. Para a ocasião, trajava uma camiseta branca simples, suspensórios segurando as calças e chinelo de couro. Era impossível observá-lo e não sentir uma vontade imensa de abraçá-lo e o acompanhar em sua gostosa celebração de absolutamente nada.

Recebeu Tristeza com um abraço e uma gargalhada, comentando que não a via há um bom tempo (o que quer que isso signifique para algo eterno). Tristeza estava com seu padrão camiseta preta-jeans-tênis, olhando vagamente para frente. Os cabelos negros e lisos caíam no rosto, em contrataste absoluto com a pela alva e sem expressão. Ela tentou esboçar um sorriso para simpatizar com o irmão, mas seria melhor não o ter feito, pelo que prefiro nem comentar a aparência perturbadora que o sorriso da Tristeza tem. Cabe lembrar, todavia, que seus dentes são bastante bonitos.

Ambos se sentaram à mesa e Alegria desatou a falar. Contava piadas, festas em que estivera, falava sobre crianças, gesticulava bastante e, vez ou outra, era correspondido por Tristeza com um “uhum” ou um aceno de cabeça. Indagada de seu rumo recente por seu irmão, ela mirou a grande janela a sua esquerda antes de dizer que apenas “passeara por aí, andando e sentindo as pessoas”, sem maiores explicações e sem dar continuidade na conversa. Sem alarde, Alegria retomou as rédeas do diálogo (monólogo?) e continuou a relatar suas andanças pelo mundo.

Subitamente, ele interrompeu uma frase, arqueou as sobrancelhas em sinal de regozijo e correu para a porta do salão, arrastando o chinelo nos pés. “Raiva, irmão querido!” bradou antes de se arremessar em direção a um corpo bem mais alto e forte que o seu e o abraçar intensamente. “Solte-me, Alegria! Sabes que não me agrada essa tua constrição exagerada!” Para esta ocasião, Raiva vestia sua armadura prateada de festas, ornada com impressões de ouro e algumas esmeraldas e rubis. Os cabelos ruivos e compridos estavam amarrados em duas tranças, uma de cada lado da cabeça, cuja ponta coincidia com o comprimento da barba espessa e bem delineada. A estatura nórdica e o machado de guerra que trazia preso às costas completavam o visual de deus nórdico que Raiva optou desde que esse povo começou a definir seu panteão.

Agora estavam os três sentados à mesa conversando; Alegria tentando tomar parte nos contos de brigas e lutas e impulsos que seu irmão mais velho contava, sem sucesso em mostrar onde poderia se encaixar. Tristeza não abriu a boca; contudo, se lembrava de estar presente em cada história contada pelo irmão… Como que lendo os pensamentos dela, uma voz nova soou no ar pegando todos de surpresa, como lhe é costumeiro: “Eu também estava lá, Raiva”. A voz era grave e serena, na altura suficiente para ser ouvida sem alarde entre os brados de Raiva e a excitação de Alegria. Medo entrara no salão e se sentara à mesa sem ser notado. O rosto oculto pelo capuz da capa, a mão putrefata apoiada sobre a mesa, de onde eventualmente brotavam baratas e aranhas, o cheiro asqueroso de sangue seco e as roupas rasgadas montavam o clichê que Medo optara desde que o cinema foi inventado pelos homens.

Alegria foi o único que gritou quando viu o irmão recém-chegado, e riu muito do fato de este sempre aparecer sem anúncio e ele sempre pular da cadeira quando o nota. Tristeza apenas ergueu o olhar até Medo e voltou a fitar o fundo do prato vazio. Raiva bateu com firmeza na mesa e começou a gritar impropérios contra o irmão, como se agredi-lo verbalmente fosse impedi-lo de fazer isso de novo, e de novo, e de novo, como sempre fizera… Finda as manifestações de recepção, Alegria conseguiu uma janela de silêncio e perguntou pelo caçula: “E o Amor, não vai aparecer hoje?”.

“Ele nunca vem…”, Tristeza constatou com um suspiro, enquanto tirava o cabelo do rosto de um dos lados e punha atrás da orelha, mostrando sua estonteante beleza fria. “De fato, não me lembro da última vez em que o vi…” e, seguindo sua frase, Medo resolveu afastar o capuz da cabeça e mostrar um rosto elegante e bem cuidado, pálido como a morte, cabelos negros até o ombro e caninos sensualmente afiados, como um Drácula sedutor. “Então vamos comer sem ele que já estou com fome!” e Alegria vestiu um bonito casaco de algodão que lhe tirava o aspecto cartunesco e lhe dava um pouco mais de seriedade e elegância. Tirou um pente redondo do bolso, esfregou sobre os cabelos que ainda tinha e sorriu.

Ao reparar em toda a cena, Raiva olhou para cima como se dirigisse os olhos a algo específico, apesar de ter apenas o céu azul sobre a cabeça. Corrigiu a postura sobre a cadeira em que se sentava, posicionada na ponta da mesa, em aparente comando dos demais, e ordenou o início da refeição. Só ele percebeu que o Amor estava ali há tempos, mas não notou que até ele mesmo, por trás da barba vermelha, arqueou ligeiramente os lábios para cima.