Em uma viagem de 6 horas de ônibus há tempo de sobra para a mente passear pelas memórias, e era esse o exercício que Otávio estava praticando sentado numa poltrona de janela no caminho entre São Paulo e Lavras. O destino final era os braços de Fabiana, garota mineira que havia prendido sua atenção pelos últimos dois meses. Eles se conheceram em uma situação bastante incomum, mas absolutamente plausível em se tratando de Carnaval.
– Sai de perto dela! – uma voz fina, firme e ameaçadora saiu do meio da multidão. O sotaque denunciava que a dona do grito não era local. Otávio nem se deu conta de que era para ele a ordem até uma mão espalmada pequena e morena bater duas vezes em seu ombro, típico de quem quer tirar satisfação.
– Desculpa, é comigo? – ele respondeu, buscando confirmação.
– Uai, tem outro rapaz tentando tirar proveito de uma menina bêbada por aqui?
– Não, calma! Não tem nada a ver… – e o jovem passou a se explicar, tentando ser o mais sucinto possível antes que o par de tapas no ombro se convertesse em um par de tapas no rosto. Contou como carregou a irmã embriagada do meio do bloco de rua até aquela esquina e encontrou a outra menina já encostada no poste, semiconsciente e babando, prestes a vomitar. Terminou concluindo que estava ali cuidando das duas, uma vez que teria que esperar a caçula se recuperar antes de rumarem para casa e percebeu que a menina do poste não tinha ninguém que a ajudasse.
Envergonhada, a estressadinha buscou reparar o erro:
– Ai, moço! Desculpe! É que eu perdi a Joyce de vista e no meio dessa folia já imaginei o pior, dado que ela estava mais bêbada que peru em véspera de Natal.
Estando ambos desarmados e penitenciados àquela esquina pela situação etílica das respectivas companhias, resolveram gastar o tempo se conhecendo, trocando ideias, informações, elogios, beijos e telefones. Apesar de ambos estarem no Rio de Janeiro, ele era paulista e ela mineira. Essa coincidência geográfica era a primeira evidência de que eles tinham tudo a ver e quase nada em comum.
Ainda mirando pela janela, tocando com os olhos as árvores espaçadas na região ondulada que a estrada cruzava, Otávio praticamente tabelou com a mente essas coincidências de gostos e atitudes dos dois. Ele preferia rock enquanto ela era mais chegada em sertanejo. Contudo, ambos tocavam violão e, por telefone e e-mail, comentavam que música andavam treinando. Ela era vidrada em seriados de comédia e ele em filmes de ação, mas discutiam muito bem questões técnicas de produções audiovisuais, como fotografia, montagem e roteiro. Ele sítio, ela praia; os dois amavam viajar e tirar fotos de paisagens. Ele Star Wars, ela Star Trek, e nem preciso comentar que quem sabe o que é isso já tem bastante coisa em comum.
Até em nomes havia convergências divergentes! O rapaz se chama Otávio Augusto, nome composto de imperador que ele amava e até fazia questão de assinar assim, sem sobrenome. A mineira era Fabiana Eulália, combinação que ela achava grotesca, mesmo sabendo que era uma homenagem à avó que deu todo o suporte necessário para a mãe fazer uma faculdade sem precisar trabalhar.
Depois do episódio do Carnaval eles não se viram mais e mantiveram contato quase que diariamente por telefone ou por escrito. De forma sutil, ele conseguiu o endereço da moça e, tão de repente quanto uma chuva de verão começa e termina, ele achou uma ótima ideia visita-la. Com bastante discrição, confirmou que ela passaria o fim de semana em sua cidade natal e partiu em uma manhã de sábado ensolarada. Ali estava desde então, sentindo o vento no rosto e o coração acelerando um pouquinho mais a cada quilômetro percorrido.
Otávio chegou à rodoviária de Lavras pouco depois do almoço e, sem fome, pegou um táxi direto para a casa de sua pequena. De fato, pequena em diversos sentidos, seja por ela ter pouco menos de 1,60 m de altura ou por falar manso e suave, como um bom mineiro, sempre com serenidade no rosto liso como um pêssego no verão e de tom acobreado exótico, fruto da sua paixão por tomar sol. Tremia levemente, ansioso pela surpresa que faria. Passaram pela sua cabeça umas três formas diferentes de abordagem quando a visse, do cômico ao surpreendente, mas tinha certeza de que, na hora, ia sair qualquer coisa engasgada seguida de um sorriso e um abraço.
A frente de uma casa de dois andares pintada em um verde suave, portão de madeira muito bem cuidado, sacada no piso superior voltada para a rua e calçada de ladrilho em mosaico abstrato, Otávio pediu que o táxi parasse. Pagou, desceu e tocou o interfone. Uma escola de samba não faria tanto barulho em seus ouvidos quanto a batida veloz que seu coração produzia. Os pés pregados ao chão sustentavam as pernas que se sacudiam ligeramente. A respiração ofegava. Os olhos não piscavam. A boca seca. Mãos suadas. Silêncio.
Não, de primeiro ninguém veio atender. Insistiu e tocou novamente, julgando que ela poderia estar no banho, ou cochilando, ou assistindo TV em volume alto, ou ouvindo música… “Ah, claro! Ela saiu para comprar uma sobremesa!” disse seu cérebro para ele, em um modo defensivo de aplacar o nervosismo. Sentou-se no meio-fio e decidiu esperá-la.
Não muito tempo se passou e ele ouviu passos e vozes, em uma conversa animada de tons altos seguidos de gargalhadas. Ele conhecia a voz: Fabi se aproximava com alguém. Quando ela despontou na esquina, ele paralisou. Infelizmente, não foi por felicidade, êxtase ou qualquer euforia que trava o contagiado. Naquele momento ele realmente se deu conta de que eles dois, Otávio Augusto e Fabiana Eulália, o roqueiro e a sertaneja, o jedi e a capitã estelar, tinham muito em comum: ambos amavam bastante. A diferença é que ele a amava exclusivamente e ela amava mais de um, fato comprovado pelo beijo caloroso que deu no rapaz que a acompanhava de mão dada no passeio.