Eu nunca soube perder! Desde pequeno eu sou um prodígio, e ninguém me deixou ser menos do que isso toda a minha vida. Aprendi a contar pouco tempo depois de aprender a formar frases, o primeiro sinal daquilo que seria uma vida de conquistas precoces. A leitura veio um mês depois do aniversário de três anos, simplesmente observando as crianças das classes mais avançadas tendo aula ao invés de desperdiçar tempo no parquinho. Tenham certeza, senhores, de que meu pai esteve presente em cada momento desses, parabenizando por cada conquista antecipada e esperando pela próxima, em uma atitude na qual incentivo e cobrança se misturam de forma poderosa e perigosa.

Apesar das características acima, não me tornei um nerd desengonçado antissocial. As aulas de educação física, ao longo dos primeiros anos em que entrou no meu cotidiano de estudante, deixou de ser um espaço de lazer para ser um de aprimoramento, competição e vitórias. Em pouco tempo era campeão nas corridas, habilidoso com a bola em qualquer esporte em que ela se fizesse necessária, tinha o melhor preparo aeróbico e a maior resistência da turma e só perdia em força para os gordos brutamontes, que também só tinham isso para se apegar. Contudo, nunca me esqueci do dia em que derrotei Raul em uma disputa de queda de braço.

Mais uma vez, o catalisador desses aprimoramentos foi meu pai. Em troca de video-games, ingresso para parques de diversão, e até de uma minimoto elétrica no caso de vitória, eu estava sempre treinando quando não estava estudando ou lendo, sob a tutela e a coordenação dele.

Não tardou para que eu entrasse em campeonatos do que quer que fosse: futebol, xadrez, olimpíada de matemática, maratona de física, atletismo (em duas modalidades), desafio de soletrar… Trouxe, para que vocês vejam, TODAS as minhas medalhas, certificados e diplomas; estão nessas três caixas grandes à direita. Eu sou um vencedor, um campeão, um conquistador, o melhor! Mas, tarde demais, descobri que sou um doente!

Não se assustem nem se precipitem, não há sequer uma doença física em meu corpo, até porque eu continuo correndo aos fins de semana e eventualmente jogando futsal com o pessoal do condomínio. Meu grande problema é o que eu me tornei. Sou arrogante, prepotente, convencido, intolerante…

Apesar de nenhum de vocês comentar em voz alta na minha presença, eu sei que vocês já sabem que eu e a Rosana estamos nos separando. Ela me disse que nunca será o que eu espero que ela seja: perfeita. Sim, ela vai levar o Thiago consigo, pois afirma que eu estou fazendo da vida dele uma continuação e extensão da minha, tornando um filho em uma máquina de realizações e feitos.

Nosso casamento, realizado com a plena aprovação de meu pai, com o tempo vi que também foi mais uma questão de vitoria do que de amor. Eu me casei com a moça mais linda e desejada da faculdade, que também era inteligente e gostava de esportes (apesar de ser mais entusiasta deste último do que uma boa praticante). Esse alicerce de areia não suportou o peso dos anos de convivência.

Pai, o motivo do meu discurso hoje ser mais sobre mim do que sobre você é porque tudo o que tenho eu devo a você. Dos gritos de campeão aos urros para que eu me dedicadse mais, você forjou uma estrela perfeita por fora, que hoje vai se despir de sua casca e de seu brilho para conseguir se enxergar de perto e por dentro sem se ofuscar. Já vendi todas as minhas coisas e vou viajar um tempo por aí para me encontrar. Pela primeira vez na vida, não tenho quem me diga o que fazer ou qual o próximo passo a dar, então nem sei direito para onde estou indo. Decidirei no aeroporto…

Antes de te ver pela última vez hoje, quero que você fique com as únicas coisas que não consegui trocar por dinheiro, já que ninguém dá valor monetário ao conteúdo dessas três caixas. Na verdade, aqui nesta sala só você dá valor de fato a esse monte de lata, fitas e papéis. Já providenciei que tudo seja enterrado junto contigo.

Quero pedir desculpas a todos os presentes por fazer do velório de meu pai um momento de desabafo, mas espero que entendam que esta era a última chance que eu tinha de falar olhando no rosto dele. Obrigado a quem veio prestar as condolências e peço que nos acompanhem, após o minuto de silêncio que se seguirá, até o jazigo para encerrarmos a despedida