O dedo de Raul estava imerso até a metade dentro da xícara de café, girando constantemente como se substituísse a colherinha que mescla o líquido amargo ao açúcar.
O dedo de Raul estava imerso até a metade dentro da xícara de café, girando constantemente como se substituísse a colherinha que mescla o líquido amargo ao açúcar. Ana, sentada a sua frente, mordia sua torrada com manteiga naturalmente, enquanto lia a revista da semana.
Ele não tirava os olhos dela e, apesar do aspecto de tédio e tristeza que trazia fixo ao rosto, observava os traços finos daquela bela mulher com quem se casara. Os cabelos finamente penteados para trás contornavam com graça seu rosto redondo, que já fora bastante risonho, mas andava afundado na rotina. Os olhos amendoados, herança do pai japonês, corriam freneticamente as linhas da revista. O charme final ficava com o biquinho que fazia para beber o leite da caneca.
– Tá foda!…
Ana não pareceu perceber que era com ela a conversa, apesar de estarem sós na casa.
– Falou comigo, amor?
– Sim. Eu disse “tá foda!”. Quando foi que a gente deixou de ser um casal apaixonado? Em que momento aquela garota envergonhada e que escondia o sorriso atrás da mão quando ouvia minhas piadas ruins foi embora? O que trouxe pra dentro de casa a apatia da rotina?
– De novo essa história, amor?! A gente já não conversou um monte sobre isso há poucas semanas?
– Eu sei, eu me lembro, mas se é pra viver assim eu prefiro…
– Prefere o quê? – ela interrompeu, levemente alterada – Prefere voltar pra periferia, onde a gente nasceu? Prefere ter uma vida medíocre de subúrbio? Prefere deixar que levem o carro e a casa por não pagarmos as prestações? – O tom de voz beirava o desafio.
– Prefiro comer bolacha de maizena a brioches, se puder ter você deitada em meu colo enquanto assistimos DVD pirata a um Bluray no home theatre. Prefiro andar de Fusca a desfilar de SUV, se você estiver sorrindo no banco ao meu lado enquanto vamos para a praça namorar, conversar e ver o domingo passar preguiçoso e despretensioso. Prefiro ser pobre e ter a mulher que pedi em casamento a tentar em vão te conquistar todo dia quando você chega do trabalho cansada e “não tem cabeça pra conversar”.
– Amor, são sete e quarenta da manhã e eu vou chegar atrasada se você quiser levar a diante mais uma vez essa conversa… Eu juro que serei toda ouvidos na volta, que vamos a qualquer restaurante que você escolher para passarmos um tempo juntos e eu poder ouvir com calma o que você tem a dizer. Mas tenho três reuniões vitais pela manhã e atrasar uma delas vai estragar a programação do call que teremos com Madri no almoço.
Sem demonstrar a pressa que começava a lhe consumir, Ana pôs na pia a louça que usou e foi até a sala buscar sua pasta. De onde estava, Raul observou que ela ainda mantinha o rebolado sensual e esquisito que seu quadril magro e encaixado, tipicamente oriental, trazia dos tempos de faculdade.
– Não importa o que você pense ou quão corrido têm sido os últimos meses, amor. Eu te amo como no primeiro dia em que nos beijamos no bosque atrás do teatro. Prometo tentar mostrar isso mais vezes… – E com um beijo estalado nos lábios e outro na testa do marido, Ana se despediu e saiu.
Raul tirou a aliança do dedo e a foto 3×4 que trazia na carteira, em que ela ainda não tinha silicone e escondia o sorriso por vergonha do aparelho fixo. Alinhou-as sobre a mesa e deu o nó em sua gravata passando o olhar de uma para outra. Beijou cada uma após vestir o paletó e as colocou em seus devidos lugares.
Era a terceira vez na semana que iniciava uma discussão… Saiu de casa sorrindo, com a certeza de que tinha encontrado a fórmula para ter um pouco de atenção da esposa, perdida em alguma fresta que a paixão deixou quando partiu e deixou o amor tomando conta do casamento deles.