Renato foi andando até a casa de Alice, um trajeto que não fazia há meses. Conhecia o percurso de olhos fechados, pelo que estranhou algo diferente no trecho que percorreria ao estender a vista para o horizonte onde deveria estar a morada da moça.

Algumas dezenas de minutos a mais seguindo pela trilha e viu o que era: um muro. Alto, robusto, cinzento, aparentemente construído sem pressa, ele cercava qualquer acesso possível à residência que ele costumava visitar com frequência antes. Como aquilo não parecia fazer sentido algum para ele, tratou de se posicionar para escalá-lo.

Afobado e desatento como de praxe, Renato nem se deu conta que enterraria os dedos em pequenos cacos de vidros posicionados estrategicamente para afastar candidatos a homem-aranha. Uma interjeição de dor, um palavrão de susto e um dedo com um corte mínimo foram os únicos reveses da tentativa frustrada de subir o muro.

Não precisou pensar muito para tentar uma solução mais óbvia. “Aliceeee! Aliiiiice!” gritou um par de vezes esperando ouvir resposta para entender o que se passava. Tendo recebido silêncio como resultado, arriscou o famoso “Tem alguém aí?” e quase prontamente teve de volta um “Vai embora!” da voz inconfundível de Alice.

– Meu Deus, o que houve?

– Você não sabe o que houve? Você jura que não sabe o que houve?

Não, Renato não sabia. Na verdade não se lembrava, mas preferiu o silêncio a outra agressão verbal.

– Você nem reconhece essas pedras, então? – indagou ela.

Foi aí que o rapaz parou para olhar de perto e com calma o muro em si. No primeiro piscar, viu o que já tinha visto, uma construção sólida e impenetrável que se erguia a sua frente. Só precisou de um segundo piscar para notar que havia algo familiar naquelas pedras. Aproximou-se com cautela e a familiaridade se explicou com um estalo em sua cabeça: eram as pedras que ele há tempos tinha levado até ela para construírem um castelo e viverem felizes para sempre.

Rabiscadas nelas em piche com a letra do próprio Renato, frases como “somos muito diferentes”, “somente amigo”, “eu primeiro”, “quer que eu vá aí” e tantas outras se espalhavam por todo o paredão. Seus erros foram esfregados em alfabeto preto pelo perímetro que os olhos tocavam. Doeu bem mais do que a tentativa de escalada.

Em silêncio, o rapaz refletiu sentado no gramado, observando aquilo tudo. Não havia possibilidade de derrubar o muro a força pois poderia desmoronar sobre Alice e sua casa. Escalar já fora descartado. Ir embora não era uma alternativa.

Ele, então, deitou no chão olhando para cima e parou para pensar. De repente, uma nuvem cinzenta traiçoeira chegou sem aviso e derrubou uma enxurrada sobre Renato, que nem se mexeu. A água que escorria pelo seu rosto, contudo, o preencheu com uma ideia.

A primeira coisa que fez foi tirar uma foto de cada frase que havia ali. Guardou todas, como memória que persiste não para afligir, mas para ensinar. Em seguida, tirou a camiseta e começou a esfregar sobre cada uma delas, sem pressa, aproveitando a umidade do muro e do tecido. Pouco a pouco, foi apagando aqueles textos pesados do muro como quem expia seus pecados, às custas de dor na mão e de puir a vestimenta.

Demorou muito e ficou exausto, mas Renato não desistiu nem reclamou. Só chamou a garota novamente quando tudo estava definitivamente limpo.

– Alice! Agora eu vejo, vejo tudo! Me perdoe!

Ele ficou estático olhando para frente aguardando ouvir a voz dela e quando estava prestes a se pronunciar novamente ela falou:

– Aqui em cima!

De alguma forma, ela subiu no muro por dentro e se sentou sobre a beirada. De onde estava, esticou o pescoço e reconheceu a mudança que o rapaz havia realizado na face externa da parede. Sem introdução ou maiores explicações, chegou concluindo:

– Ainda assim, pena que é tarde demais!

Virou-se para o lado de dentro e desceu como se apoiada em uma escada, até sumir da vista do rapaz.

Dolorido e desesperançado, ele deixou que a tristeza tomasse conta de seu corpo. Não chorou; não se permitiu chorar. Preferiu recostar no muro, sentar-se e cantar todas as músicas que conhecia de cor que o faziam lembrar dela. Adormeceu entre desafinos e versos de desalento.

Uma mão o sacudiu em algum momento antes de escurecer e ele abriu os olhos perdido, aquele instante em que se acorda sem saber onde onde está, a cabeça virando de um lado para o outro procurando um referencial que dê orientação. Parou quando encontrou o rosto de Alice.

Ela estava de pé ao seu lado, de mão esticada na sua direção oferecendo apoio para ele se levantar. “Venha”, disse, sem completar com mais nada que falasse para Renato o que acontecia ali. O muro estava desmontado quase totalmente, sem sinal de força bruta. De resquício, apenas um pequeno parapeito de pouco menos de um metro de altura.

– Se você ainda quer erguer um castelo comigo, deixe as frases como estão: apagadas, mas não esquecidas.

O rapaz não quis entender. Sabia que para continuar com sua felicidade, bastava carregar a primeira pedra, colocá-la no chão no lugar certo escolhido por ambos e buscar a próxima. E assim ele fez.