– Mãe, onde está meu sofá?!
Solta assim, sem contexto, essa pergunta não faz sentido algum. Ela trata o móvel como se fosse uma boneca de estimação, que foi largada no meio da sala depois de alguma brincadeira e não “apareceu” na estante, junto com as outras. Andressa, contudo, tinha motivos para indagar sua mãe dessa forma.
Há 15 anos, mais ou menos na época em que aprendia a desenhar as primeiras letras e ler as primeiras palavras, sua brincadeira favorita era ser a “mãe” da casa. No quintal, arrumava os tijolos que sobraram da reforma da lavanderia e em instantes tinha mesa, sofá, cadeiras e até cama para suas quatro “filhas”, Barbies genéricas compradas no centro.
Acordava-as para ir para o colégio, preparava-lhes o café da manhã, levava e buscava as filhas do colégio, dava almoço, dava bronca, dava aulas de reforço, dava carinho, dava amor. Dava gosto de ver a criança se divertindo brincando de ser adulta. A mãe de Andressa, inclusive, era uma espectadora costumaz do teatrinho. Da cozinha, no meio dos afazeres, às vezes até esquecia a torneira da pia aberta enquanto se distraía observando a filha pela janela, sorriso satisfeito nos lábios.
Quando seu marido recebeu uma promoção no serviço e resolveu trocar os móveis da sala, a mulher nem hesitou ao doar o sofá velho para a filha, colocando-o na parte coberta do quintal e dizendo que ela podia brincar com ele. O brilho nos olhos da menina ao visualizar seu mais novo objeto de diversão seria capaz de iluminar a mais escura das cavernas, de tão cristalino e puro.
Inicialmente, a casa passou a ser ali. Ela anunciava a todos os visitantes, familiares e quem quer que fosse visitá-los o que havia ganhado da mãe e contava que ela e sua “filhas” haviam saído de uma casa e ido para um apartamento “bem mais bonito, não acha? Tem vista até pro clube e pra rodoviária!”.
Um pouco mais madura, parou de brincar de casinha daquela forma, mas o sofá passou a ser a loja do shopping que visitava com as “amigas” (as filhas velhas e surradas foram substituídas por bonecas mais novas e de visual moderno). Percorria lojas de sapato, experimentava roupas, comprava maquiagens e terminava na praça de alimentação com McDonald’s e risadas.
Na fase seguinte, as bonecas pararam de sair da estante e o sofá virou refúgio da pré-adolescente, que trazia as colegas de classe (desta vez as reais) para fazer trabalho em casa e invariavelmente terminavam ali, falando sobre tudo e nada, em geral todas ao mesmo tempo.
Daí para local de estudos e leitura, a passagem foi natural. Largada ali em todas as posições que se possa imaginar, ela se alternava entre os enfadonhos livros do colégio e as revistas teen, com pôster e quiz sobre o galã jovem do momento.
Poucos sabem, mas aquele sofá também foi testemunha do primeiro beijo de Andressa. Depois que terminaram a maquete que a professora de história tinha pedido, ela e Samuel ficaram conversando no sofá por quase uma hora, até o menino tomar coragem de anunciar o que todo mundo já sabia e pedir o beijo, prontamente aceito pela garota enquanto as bochechas queimavam vermelhas de vergonha.
O sofá já foi ombro amigo em desilusões amorosas, confidente dos segredos mais escuros, divã para dúvidas quase existenciais, repouso para um corpo de ressaca após uma noite de balada e até cama, quando Andressa esqueceu de levar sua chave de casa ao sair, voltou de madrugada e, por medo da reação da mãe ao ser acordada àquela hora, pulou o muro e se encolheu sobre seu amigo acolchoado.
Portanto, ao chegar do estágio naquele dia, não foi sem sentido a pergunta da jovem quando não encontrou o sofá no mesmo canto que ocupava havia uma década e meia. A mãe explicou que o sofá estava velho, sujo, com o braço quebrado, tinha três rasgos horrorosos e fedia. Sinceramente, quem o visse pela primeira vez concordaria plenamente; o tempo também havia usado o sofá e deixado suas marcas.
Pula-se aqui a parte da história em que Andressa protestou. Diga-se apenas que não usou seu vocabulário mais polido. Correu para o quarto e se afundou na tristeza sobre a cama, só para sentir mais falta do sofá ao perceber que havia perdido até seu espaço favorito de lamentações.
Andressa havia ficado incompleta e não fazia questão de esconder. Passou os dias seguintes com os ombros caídos, sorria menos, falava menos e desconversava se alguém perguntasse o motivo da mudança de postura. Ia trabalhar sem vontade e de lá não queria voltar para não se deparar com o quintal vazio.
Depois de uma semana e meia de desânimo, a jovem começou a se conformar com a situação. Chegou a considerar comprar outro sofá, mas até assim sentia-se traindo o velho e gasto amigo.
Sábado pela manhã, o segundo fim de semana sem o móvel, a mãe de Andressa foi acordá-la bem cedo. Disse que havia preparado um café da manhã especial para ela “ficar mais animadinha” e queria que o tomassem juntas. Desmotivada, mas tocada com o gesto da mãe, ela aceitou a proposta e desceu, seguindo-a.
Ao entrar na cozinha, a mulher olhou para a filha e pôde enxergar um brilho no olhar que só havia visto há quinze anos. E aquele par de faróis de emoção que se plantou no rosto de Andressa apontavam para o lugar onde seu sofá não havia estado nos últimos dez dias. Não havia, até aquele momento.
Lá estava ele, totalmente reformado. Se alguém fosse comparar uma foto do objeto que fora levado com este que ocupava o lugar agora, dificilmente identificaria como a mesma peça de mobília. Mas Andressa não tinha dúvidas: o tecido era novo e limpo, o braço tombado para fora foi colocado no lugar e o enchimento fazia um volume de que ela não se lembrava. Entretanto, um amigo de longa data que corta o cabelo e troca de roupa, mesmo que passe anos afastado, ainda assim é reconhecido instantaneamente.
– Minha filha! Se eu soubesse como você passaria os dias, teria te avisado da surpresa que eu e teu pai queríamos te fazer! Teve uma hora em que ele insistiu para que eu te contasse e eu até cogitei fazê-lo, mas fiz melhor em segurar o segredo e poder testemunhar essa cena linda…
Sim, realmente era uma cena linda! Andressa beijou o rosto da mãe bem demorado, correu para a sala e beijou a testa do pai, que até ficou meio sem reação, e voou para o sofá, jogando-se com tudo sobre ele. Esparramou-se de costas, jogou um pé sobre o encosto e outro estendeu o mais longe que pode, no mais próximo possível que se dá pra adaptar um abraço àquele tamanho todo.
A mãe desistiu do café da manhã. Voltou-se para a pia com louça suja, abriu a torneira e contemplou pela janela, distraída e de sorriso satisfeito nos lábios, a alegria da filha.