Minha mãe queria que eu fosse médico como ela. Vivia comentando que me imaginava entrando pela porta da sala de jaleco branco e estetoscópio no pescoço ao fim de um dia de trabalho, narrando os casos que apareceram e como os resolvi. Dizia que as pessoas sempre ficarão doentes, então nunca haveria problemas em arranjar emprego, e, pela quantidade de anos que se estuda unida à minha facilidade em aprender, eu ganharia muito dinheiro.
Meu pai queria que eu fosse engenheiro como ele. Comentava que não via a hora de nós dividirmos o escritório de projetos, ou de eu executar uma obra que ele e sua equipe tivessem desenhado e detalhado. Argumentava que meu potencial analítico combinava perfeitamente com o perfil de um engenheiro de sucesso e que, caso a área técnica não me interessasse, o mercado de trabalho contrata engenheiro para quase qualquer coisa e eu poderia decidir no que atuar após a conclusão do curso, com uma cabeça mais madura. Seu sonho era que a linhagem de engenheiros da família, que começou com seu avô e desceu pela sua mãe, fosse eterna.
Minha avó queria que eu fosse padre, já que ela não pôde ser freira. Desde muito criança ela me levava às missas e aos encontros de ministérios da paróquia, tentando fazer despertar em mim o chamado à obra do Senhor, como ela costumava dizer. Quando ela era jovem, fora proibida por sua mãe de ser freira porque estas viajavam muito, às vezes até para o exterior, e minha bisavó não queria que sua filha se afastasse tanto e por tanto tempo. Restou à mãe do meu pai tentar empurrar o desejo para a criança que mais lhe dava atenção.
Meu avô queria que eu fosse militar como ele. O homem saiu do interior de Minas Gerais aos 18 anos com apenas uma mochila contendo duas cuecas, duas camisetas, um RG e centenas de sonhos. Trinta anos depois, ele já era pai de sete filhos criados, a maioria com faculdade, tinha casa própria, dois carros, cinco netos e recebia aposentadoria integral referente ao último soldo da ativa. A tudo isso ele dava graças à carreira no exército, aonde chegou até a patente de sargento, e queria o mesmo sucesso para o neto mais regrado.
Meu padrinho queria que eu fosse funcionário público como ele. A segurança que sentia ao acordar e saber que sua estabilidade estava mantida era algo tão bom para ele que fazia questão de que todos pudessem saborear. Chance zero de demissão, plano de carreira, regime especial de previdência, todo o aparelho do Estado amparando uma vida profissional, que sustentava a vida pessoal. Ele comentava todos os editais de concursos interessantes que surgiam, das mais diversas áreas, certo de que eu passaria em qualquer um a que me dedicasse.
Minha madrinha queria que eu fosse ator, exatamente o que ela nunca conseguiu ser. Via em minha espontaneidade e humor irreverente um foco de entrada no mundo artístico, o mundo de glitter, glamour e graça que ela via através da TV. Chegou a me inscrever em uma aula de teatro sem me consultar, que inclusive frequentei por três semanas para agradá-la, e me levou a meia dúzia de audiências e testes de atuação. Vivia dizendo que me sairia muito melhor que ator fulano ou cicrano da novela das seis, e daria um baile nele se estivesse em seu lugar.
Já Soraia queria que eu fosse feliz. Ela queria ser astronauta quando era criança, cabeleireiro na adolescência, heterossexual na juventude e só se encontrou mesmo quando começou a fazer shows de música e humor em boates pela cidade. Sem dúvida nenhuma se tratava da drag queen mais bem montada da cidade, e se ganhava dinheiro com isso tratava-se de um bônus por trabalhar com o que ama fazer. Tê-la conhecido à toa em um boteco, vestida de Raul mesmo, e em seguida ter acompanhado uma performance sua me fez entender que cada um tem que buscar sua felicidade, trazendo-a de dentro para fora.
Eu mesmo quero ser bom para o mundo. Quero morrer ciente de que fiz a diferença! Já tentei me voluntariar para ajudar orfanatos, mas a despedida daquelas crianças me mata. Em asilos me entediei com as histórias que são contadas à exaustão como se fossem novidades. Fui encontrar minha vocação na recuperação de dependentes químicos. Ah, drogados, vai! Sem frescuras… Ajudo em sessões do Narcóticos Anônimos e saio à noite com um grupo para recolher pessoas em situação de risco, principalmente aqueles altamente chapados que ficam largados em qualquer canto, ou pior, que estão “responsáveis” por cuidar de uma criança. Semana passada comecei o treinamento para poder ministrar palestras em escolas públicas de bairros carentes.
Minha mãe não condena o que faço, só acha que eu deveria entrar em uma faculdade e dividir minhas atividades com mais estudos. Meu pai mal fala comigo desde quando comecei a sair à noite para as reuniões do grupo. Minha avó até gostou da minha iniciativa, e pede que eu leve terços e imagens para os doentes. Meu avô, coitado, ainda tem esperanças na minha vida militar: “Até os 23 pode se alistar; vai dar rumo na sua vida e para de ajudar vagabundo!”. Meus padrinhos se mudaram pra Belo Horizonte antes de eu concluir o Ensino Médio e só me ligam no aniversário e no Natal.
Já Soraia é grata até hoje por tê-la ajudado a se recuperar do vício em cocaína e heroína.