– Dona Francisca, chegou visita para a senhora.

A frase interrompeu a concentração da idosa que tricotava uma peça de tamanho pouco convencional, cujo formato não dava nenhuma pista do que viria a se tornar quando pronta. A mulher de cabelos bastante grisalhos, quase totalmente brancos, apoiou o conjunto de lã e agulhas sobre as coxas gordas e retirou sem pressa os óculos que pendiam sobre a ponta do nariz, deixando-os pendurados pelo cordão que envolvia seu pescoço.

– O que você disse, minha filha?

A enfermeira pacientemente repetiu a frase de forma mais pausada: “Eu disse que a senhora tem visita”. “Ah! Que bom!”, exclamou Dona Francisca, abrindo um sorriso de satisfação. Dentro do permitido pelos músculos flácidos e tendões enrijecidos pelo tempo, a mulher pôs-se a se ajeitar para receber alguém. Apoiou o trabalho manual sobre a cama, colocando os óculos por cima, ajeitou os fios cor de prata sobre a cabeça e prendeu delicadamente as mechas que caiam sobre o rosto com pequenas presilhas pretas, que se destacavam no tapete nevado que os cabelos formavam. Para completar, jogou um xale leve e colorido sobre as costas, ajeitando as pontas sobre o colo do peito, instantes antes da visita entrar no quarto.

– Bom dia, Dona Francisca. Tudo bom com a senhora? – falou a mulher assim que atravessou o batente de madeira escura. Esta aparentava seus quarenta e poucos anos, cabelos escuros compridos até as costas, ombros caídos e olhar desalentado. O sorriso que trazia, apesar de autêntico, carregava um quê de tristeza.

– Tudo bom, e você?

– Tudo ótimo. A senhora se lembra de mim?

A frase pareceu ter transtornado aquela senhora. O verbo lembrar há anos tinha se tornado seu inimigo. Datas, nomes, rostos e lugares escorregavam de sua memória dia após dia, vazando pelo buraco aberto por um acidente de carro que sofrera enquanto sua filha dirigia. A suspeita de Alzheimer adicionava a ferrugem que aumentava o buraco progressivamente. Sem esconder o incômodo por não poder responder positivamente a pergunta, mas perseverante na tentativa de se manter acolhedora, ela desculpou-se:

– Ai, minha filha, me perdoa. A cabeça dessa velha aqui já não funciona tão bem, sabe? Se eu te conheço eu não estou reconhecendo. Você é a…?

Compreensiva, a visitante abaixou os olhos por um breve instante e voltou a olhar para dona Francisca:

– Não se preocupe com isso. Me chamo Rosemeire e morei na mesma rua que a senhora por um bom tempo. Quando soube que a senhora estava internada aqui, vim ver como estava passando.

– Ah, eu não estou internada, não! Aqui é mais tipo uma casa de repouso, até a cabeça melhorar e eu poder voltar a morar sozinha. Eu acho que mais um ou dois meses eu já consigo ir embora.

– Entendi. Torço pra Deus que sim; o pessoal do bairro comenta a falta que a senhora faz por lá, os bolos que ninguém mais distribui pra criançada no domingo de tarde, o papo no portão quando a tarde vai e a noite vem chegando, o cheiro de feijão temperado que escapava da janela da cozinha pra rua e atraía as pessoas que voltavam do trabalho e faziam questão de passar do seu lado da calçada pra abrir o apetite pra janta…

– Pois é, dessas coisas de mais antes eu me lembro, sabe? Lembro do pessoal do bairro, da minha casinha, da minha filha Rita, do Geraldo, meu marido. Tadinho, morreu tão novo… – e à suspensão da frase seguiu-se uma inquietação na idosa. – Ele morreu faz tempo, né?

– Sim, dona Francisca. Faz um bom tempo que o Seu Bigode deixou a gente. – E Rosemeire desviou o olhar janela afora, mirando um casal de passarinhos que se apoiavam preguiçosamente sobre um galho de árvore do outro lado da rua.

O silêncio nostálgico que começou a preencher o quarto foi rapidamente quebrado por dona Francisca, que era quem mais sofria com esses momentos:

– Rosemeire, já te mostrei o álbum de fotos antigas da minha filha que trouxeram pra mim?

– Não, ainda não… – a voz da mulher pareceu tremer, hesitante.

– Então venha ver, venha! – Dona Francisca era pura alegria enquanto tirava uma caixa de papelão muito bem decorada da porta baixa do criado-mudo. Colocou-a sobre a cama e abriu, revelando um álbum singelo de plástico, desses que se encontra com facilidade em qualquer papelaria. – Me disseram que minha filha quis que ficasse comigo depois do acidente, sabe? Tenho muitas saudades dela… Queria que ela tivesse sobrevivido ao acidente…

Um leve soluço escapou da senhora enquanto ela tentava conter o choro, que tentava estragar aquele momento feliz. Rosemeire não se esforçou na mesma monta, permitindo-se verter águas pelos olhos silenciosamente. Sentada em sua cama, a mulher mais velha folheava o álbum docemente e indicava para sua visita todas as vezes que a filha aparecia. Quando se lembrava da situação capturada pela foto, narrava com detalhes o evento. Cheiros, gostos, luzes, sons, sentimentos e pensamentos eram compartilhados abertamente por dona Francisca. Contudo, naquelas em que o evento se perdera entre a confusão mental e a doença degenerativa da pobre idosa, esta apenas acariciava o rosto da filha e dizia frases como “Ela não era linda!”, “Minha única filha agora mora com Jesus e pede por mim, sabe?”, “Esse sorriso ela puxou do pai”. Ao passar a última página e fechar o álbum, uma xícara de café já havia sido consumida por cada uma delas e diversas histórias antigas foram recitadas.

– Dona Francisca, já são mais de quatro e meia, preciso ir embora…

– Ô minha flor, essa velha fala demais, não é? – e tratou de rir com prazer – Obrigado pela visita, menina. Volta mais vezes que você me faz lembrar muito minha filha!

Rosemeire rapidamente abraçou a senhora bastante apertado, antes que o choro lhe rompesse a força da garganta que o segurava. Não queria que a última imagem que a senhora guardasse naquele dia fosse de sofrimento. Antes de sair, beijou-lhe a testa e prometeu que sim, voltaria.

Dali, ela seguiu à diretoria da casa de repouso, sentou-se em uma mesa e aguardou a secretária voltar. Sozinha, permitiu-se cair os prantos com a mão no rosto e os cotovelos sobre os joelhos. Ela estava cansada! Cansada de não ser reconhecida pela própria mãe visita após visita, cansada de ser uma estranha para aquela que mais ama, cansada de não ter esperança de ser filha de novo, cansada de repetir a encenação há mais de cinco anos.