O salão de festas recebeu Rafael com a mesma despretensão que ele demonstrou ao entrar no recinto. O olhar vago ele trazia desde a época de faculdade, em que conheceu a maioria ali. Hoje, usava esse olhar para buscar rostos conhecidos e um copo de bebida para ajudar no entrosamento. Agarrado à sua mão estava sua mulher, visivelmente mais interessada no evento do que ele.
Há pouco mais de dois meses, veio por e-mail um convite para celebrar os dez anos de formatura da turma e, apenas porque sua mulher foi mais ligeira em ver a mensagem e se intrometer antes que Rafael a apagasse, ele acabou confirmando a presença. “Deixa de ser antissocial uma vez na vida, pelo amor de Deus, homem!” foram as palavras que iniciaram o processo de convencimento.
Lá dentro, reencontrou parte da turma nerd com quem jogava videogame até tarde aos finais de semana, a maioria solteira e potencialmente virgem. Também trocou meia dúzia de palavras com os atletas, que só queriam saber de futebol, e as patricinhas, vestidas todas quase iguais com a roupa da moda, desta vez bancadas por elas mesmas ao invés de usarem o dinheiro dos pais.
O medo que sentira tanto ao aceitar o convite quanto ao entrar na festa começava a ser levado embora com as conversas à toa, dando-o confiança até para arriscar se aproximar dos mais isolados, quando a avistou. Do outro lado do salão, Noemi estava de costas e conversava alegremente com o homem a sua frente, que Rafael nunca tinha visto na vida.
Apesar da vontade de sair andando dali, seus pés lançaram âncoras no piso do salão. Queria tirar os olhos dela, mas não conseguia sequer piscar. Preferia que sua esposa não tivesse notado, mas um “Quem é ela, Rafa?” o tirou o transe.
“Quem?”, ele arriscou para ganhar tempo. Evidentemente a resposta não foi bem aceita e, como sua mulher é daquelas impulsivas, que vira e mexe perdem a oportunidade de se calar, o marido foi tomado pelo braço e praticamente o arrastado para perto de Noemi. O movimento do casal teve sucesso ao conseguiu chamar a atenção desta, embora a esposa não tenha gostado nem um pouco de ter visto no rosto da desconhecida o mesmo olhar perdido e a sensação de desamparo que vira há pouco no marido.
– Oi, Rafael…
– Oi, Noemi…
Então, em um balé bisonho, desencontrado, os dois corpos não se decidiram se um beijo no rosto ou um aperto de mão seria o mais adequado. Acabaram fazendo os dois como se desejassem não ter feito nenhum. O silêncio que se seguiu (e pareceu eterno para os quatro) só foi rompido quando o marido de Noemi se apresentou, claramente tentando salvar a esposa.
– Prazer, sou Lúcio!
– Ah, desculpe! Muito prazer! – Os homens apertaram as mãos – Esta é minha mulher, Gabriela.
Enquanto os dois desconhecidos trocavam convenções sociais, os dois ex-colegas de faculdade voltaram a se olhar. Noemi se lembrou do dia em que conversavam no banco em frente à faculdade e o primeiro beijo rolou, quase que do nada. Rafael tinha na cabeça todas as coisas estranhas e divertidas que fizeram juntos, desde ir a um estádio de futebol (coisa que ela não tinha o menor interesse e odiou a experiência) até ir a um encontro de colegial com os amigos dela (onde não conseguiu fazer uma amizade sequer com tanta gente diferente dele).
– Nossa, Rafa! Não me lembro de você me falar da Noemi!… – Gabriela provocou o marido para entender o que se passava ali.
– Devo ter falado sim, talvez tenha passado despercebido só. – mentiu descaradamente. Obviamente, ele omitiu tudo o que se referia a ela. As feridas deixaram cicatrizes um pouco grandes, que, apesar de curadas, ele preferia não olhar.
Feridas causadas por falarem diferente um do outro, por entenderem de modo diferente um do outro, por serem tão diferentes um do outro. Cortes e arranhões originados no medo e na insegurança de se entregarem um ao outro. Desentendimentos que viraram omissões, que viraram mentiras, que viraram dor. E esta foi a única que não foi esquecida por nenhum dos dois.
– Quer mais um champanhe, amor? Eu vou buscar para você. – disse calmamente Lúcio. Ele percebeu que havia algo ali e preferiu dar esse tempo à mulher. Gabriela entendeu a deixa e, muito a contragosto, disse ao marido que precisava ir ao banheiro, e que ele deveria esperá-la no mesmo lugar.
Os dois que ficaram passaram a desviar os olhares, ela olhando os próprios sapatos e ele cutucando nervosamente as unhas da mão.
– E aí, como estão as coisas? – arriscou Rafael.
– Bem, e com você?
– É… Bem também…
Mais alguns segundos de silêncio e Noemi levantou a cabeça. Pequenas poças resistiam à gravidade, sustentadas pelas pálpebras. Rafael viu a amargura personificada na sua frente.
– Olho pra você e vejo algo que poderia ter sido grande, mas ficou só no ‘e se…’, diluindo-se até algum dia virar nada. É triste. E só.
Rafael fez força para engolir, como se um ovo de avestruz quisesse descer por sua garganta. Respirou fundo e tentou se lembrar dos momentos felizes que tiveram juntos, mas, embora soubesse que eles existiam aos montes, só os conflitos mil povoavam seus pensamentos. Vendo que o marido dela estava prestes a retornar, tomou sua mão, deu um beijo rápido, soltou-a e concluiu:
– Eu recebi sua carta. Guardei. Depois desse tempo todo, já te desculpei. Mas você se tornou a sombra de alguém que eu achava que conhecia. Preciso ir agora.
Rafael virou-se e se dirigiu à porta do banheiro feminino; sua mulher já vinha em sua direção. Nem Rafael nem Noemi disseram ‘tchau’ um ao outro…