Ricardo acordou cedo naquele dia. A claridade o tirou da cama sem muita cerimônia, entrando pela fresta da janela entreaberta do quarto, que trouxera a brisa noturna ao ambiente antes que ele fosse dormir na noite anterior.

Já de pé, a primeira coisa que fez após calçar os chinelos foi beijar a testa da irmã mais nova, que ainda dormia na cama ao lado. Desde que ela começou a ter pesadelos frequentes, eles dividem o quarto; Ricardo não se importa nem um pouco com isso e vê a pequena com carinho, tomando ativamente parte na sua criação e educação.

Saiu de lá tentando fazer o mínimo de barulho possível e seguiu diretamente ao banheiro, para o asseio matinal. Abriu a porta despretensiosamente e se assustou com o grito surpreso e estridente da avó: a senhora estava na banheira e esqueceu de girar o trinco. Ricardo, contendo o riso, desculpou-se com a idosa e seguiu para a suíte dos pais.

No quarto, deu “bom dia” à mãe, que estava sentada em frente a sua penteadeira, e pediu gentilmente para usar o banheiro dos pais. Entre uma passada e outra do pincel de maquiagem no rosto, a mulher aquiesceu de forma discreta com a cabeça, concentrada que estava no ato de se embelezar. Antes de se retirar, ele observou que seu irmão caçula ressonava tranquilamente sobre a cama de casal, e permaneceu por alguns segundos mirando a paz que se exibia no rosto do pequeno.

Após usar o sanitário, escovar os dentes e lavar o rosto, Ricardo voltou ao quarto, beijou carinhosamene o topo da cabeça da mãe e rumou para a escada, visando a cozinha no pavimento inferior.

Assim que tirou o pé do último degrau, ouviu folhas de jornal em movimento preencherem o ar e desviou um pouco a rota. Seguiu para a sala de estar, onde seu pai lia a publicação, como era de se esperar. Contornou a poltrona em que o homem estava ajeitado e, por trás dele, pôs-lhe as mãos nos ombros e repetiu o “bom dia” que entregara à mãe como saudação inicial do dia. Sem tirar os olhos do papel, o leitor sorriu e devolveu o cumprimento.

Já na cozinha, preparou seu pão-com-manteiga para ser comido com o leite-com-nescau e os saboreou sem pressa. Após, lavou a louça e tomou uma vassoura para si para varrer a entrada da casa do sítio. Centralizado no terreno vasto e distante quase vinte minutos da cidade mais próxima, o imóvel estava muito bem cuidado, apesar da aparência e estilo antigos.

Ricardo terminava de recolher a poeira e a terra recém-varridas, quando, para sua surpresa, um veículo apareceu por ali quase duas semanas após o último que o fez. Era um carro de polícia.

– Posso ajudá-lo, senhor policial?

– Ricardo de Almeida, o senhor está preso por homicídio e ocultação de cadáver! – gritou o agente da lei, enquanto apontava uma arma em sua direção com uma das mão e buscava as algemas na cintura com a outra. – Não se mova!

O parceiro do primeiro policial cruzou este e o jovem rapaz algemado, entrando na casa. O cheiro era insuportável: uma mistura de carne em decomposição, esgoto, sangue seco e mofo. Na cozinha, avistou um pacote de pão bolorento ao lado de um pote de manteiga rançosa remexida. Um copo com pouco mais de um dedo de leite azedo e talhado completava o cena.

De lá, foi para a sala e viu uma poltrona ensanguentada. Sobre ela, o corpo putrefato de um homem tinha um jornal dobrado apoiado sobre as coxas. Cinco perfurações no peito eram visíveis, feitas a faca ou outro objeto pontiagudo semelhante. O agente seguiu as pegadas de sangue seco que estavam no chão e foi guiado à base da escada.

Receoso do que mais poderia encontrar, ele tirou a pistola do coldre e subiu passo ante passo, escorado na parede. O andar de cima era um grande corredor com quatro portas: duas à esquerda, uma à direita e uma em linha reta ao fundo. O policial continuou a caminhar lentamente e abriu a primeira porta.

A visão e o cheiro que o tomaram de súbito desafiaram o estômago a manter seu conteúdo. O corpo de uma senhora boiava de costas na banheira cheia de água corada entre o negro e o verde. Os cabelos, brancos como fios de algodão, se abriam em leque, dando um aspecto de filme de terror à cena. A impressão era que a senhora poderia levantar-se a qualquer instante, rindo de forma grotesca!

A porta do banheiro foi fechada assim que o agente voltou a si e o reconhecimento do local se seguiu. Na segunda porta, duas camas de solteiro desarrumadas dividiam o espaço com um armário grande. Sobre uma delas, um corpo infantil estava estendido. O pijama estava muito limpo, em oposição ao cadáver atacado pelo tempo e pelos micróbios.

A terceira porta acessada levava a um segundo quarto, com apenas prateleiras com livros e uma mesa no canto. A poeira tomava conta de tudo, mas não se via sinal de que chacina praticada naquela casa tivesse envolvido aquele cômodo.

O último ambiente acessado era o mais bagunçado, mostrando, inclusive, sinais de lutas corporais travadas. Uma mulher morta estava apoiada sobre uma cadeira e tombada sobre uma penteadeira. Uma maquiagem macabra fora passada sobre seu rosto, junto com borrões de sangue. A garganta estava profundamente cortada, e a camisa que a mulher usava estava toda tingida de vermelho escuro na frente.

A se virar para partir, tendo registrado visualmente tudo o que se passou naquele lugar, o policial teve a visão final e mais perturbadora de todas. Um menino, de não mais de 5 anos, pendia pendurado pelo pescoço em um canto. Sobre ele, escrito em sangue, lia-se: NUNCA MAIS ME DEIXARÃO SOZINHO!