A chuva acertava a janela da cabana de Tomás e estalava sonoramente contra os vidros. Uma chuva lateral ousada, como se batendo com firmeza à porta pedisse permissão para invadir o interior aconchegante da singela moradia. Lá dentro, um jovem tomava chá quente e lia despretensiosamente um livro de muitas páginas.

As tempestades naquela região não eram de todo comum, mas também não tiravam o sossego dos poucos moradores dali. No vale extenso e verde, pequenos arbustos densos pipocavam como sardas em uma faixa ao redor do grande lago quase ao centro do local. As casas e casebres, em sua maioria, ficavam à beira dele, onde a vista era privilegiada pelo nascer ou pôr do sol espelhados em sua superfície.

Naquele momento, entretanto, Tomás não era capaz de enxergar a lâmina d’água. As gotas grossas desciam quase lateralmente do céu e faziam um véu no ar, bloqueando a vista 20 metros a frente de qualquer um. Focava, portanto, nas páginas viradas e nas letras pretas contra o fundo branco de seu volume de aventura.

Não mais do que dez folhas viradas depois do início do dilúvio, a ferocidade da água que caía foi se abrandando. Persistia, mas se tratava agora mais de uma ducha modesta da natureza sobre sua terra do que um descarregar de fúria. O tempo começava a clarear e a paisagem a se mostrar, ainda que embaçada.

Como quem se perde em pensamentos, Tomás tirou os olhos do livro e passeou com eles pela cabana, repousando a vista na janela e através dela. No lago ainda agitado pela chuva, um grande bulbo verde flutuava sobre uma folha larga de planta aquática, servindo-lhe de balsa. Intrigado pela cena atípica, o rapaz manteve a atenção naquele estranho barco vegetal flutuando para lá e para cá, enquanto a chuva virava chuvisco e cessava. Ao se dar conta que não se molharia ao deixar o chalé, ele calçou o chinelo, pôs um casaco leve nas costas e saiu, com rumo certo àquele objeto estranho que descansava perto da borda do lago.

A dois passos da planta, Tomás agachou-se e se pôs a estudá-la. Ele não foi capaz de se lembrar de já ter visto essa espécie naquele lago; aliás, só tinha visto plantas aquáticas de mais de um metro de largura na televisão. A folha que flutuava era de um verde vivo, sem pontos pretos ou manchas aparentes. De longe até parecia que sua superfície era completamente lisa, mas com atenção se viam pequenas ondulações. No centro desta, um bulbo bastante simétrico se posicionava perfeitamente equilibrado, de coloração verde pouca coisa mais escura e já exalando um perfume suave, doce e envolvente.

Inebriado pelo aroma e pela visão, ele sentou-se sobre a terra molhada, mesmerizado. Sem poder dizer se se passara um minuto ou uma hora depois da aproximação, Tomás notou que o bulbo, que se provou um botão de flor, começou a abrir. Uma luz tênue saia de dentro, exibindo uma sombra de forma humanoide que parecia encolhida ali dentro. O brilho rosado refletia no lago e iluminava ligeiramente ao redor, transformando totalmente a atmosfera bucólica do vale em um ambiente quase mágico.

Por fim, depois que as folhas externas viraram um cálice vegetal, as pétalas passaram, por sua vez, a se abrir. A intensidade da luz aumentava ligeiramente a cada movimento de abertura das lâminas cor-de-rosa; contudo, os olhos não doíam se fixos ali. Pelo contrário, era viciante e quase impossível desviar o olhar, exigindo uma força de vontade que o rapaz não estava disposto a mobilizar.

Com a flor gigante quase desabrochada sobre a planta aquática, numa escultura de beleza indescritível, uma figura feminina começou a se revelar ali dentro. Pequena para tamanhos humanos, mas grande o suficiente para não ser confundida com um animal qualquer, ela estava sentada no centro da flor, joelhos dobrados e as mãos abraçando estes. A cabeça permanecia baixa, como se dormisse em um casulo e estivesse pronta para acordar.

O queixo do rapaz estava solto, a boca aberta entre o assombro e o fascínio. Mais rápido do que o piscar dos olhos, aquele ser feminino, pequeno, delicado, atraente, aquela musa levantou a cabeça e olhou Tomás no fundo dos olhos. A pele era branca e rosada, em tons suavemente mais claros do que a flor. Os cabelos negros e ondulados, de comprimento médio, pendiam sobre os ombros. Os olhos eram ligeiramente amendoados, dando um ar de estrangeiro às feições perfeitas, mas sem passar estranheza a quem admirasse. Cobrindo o corpo, um vestido azulado justo ao corpo, feito de pétalas e folhas de brotos.

Ela trocou a posição dos joelhos dobrados por aquela semelhante a de meditação e esticou as costas, espreguiçando-se com um sorriso. Não é possível comparar seu sorriso com nada, seja natural ou artificial; seria uma afronta às sensações únicas de observá-lo. O que se pode dizer é que o corpo inteiro de Tomás formigou instantaneamente… Para completar sua experiência sensorial, um brilho translúcido começou a se agitar nas costas da pequena garota. Indecifrável em um primeiro momento, quando aquilo começou a vibrar freneticamente e produzir um zumbido característico, ele percebeu se tratar de asas.

Tomás já se encontrava sentado com as pernas esticadas, as mãos apoiadas no chão atrás do corpo e o pescoço frouxo. Era apenas um espectador daquilo tudo…

A pequena, de pouco mais de um metro de altura, pôs-se de pé e começou a planar. Ela ainda olhava diretamente para o rapaz, com o mesmo sorriso natural e prazeroso. Assim que tirou a ponta do pé da flor aquática e perdeu totalmente o contato com esta, uma pequena explosão surda de luz transformou a planta em milhões de pontos de brilho, como vagalumes efêmeros, que sumiram segundos depois.

Para completar o espetáculo, ela se projetou para frente em direção a ele. Parou tão perto que um grão de pólen teria dificuldade de passar entre os rostos. Tomás não se mexia. Assim ela ficou por mais alguns instantes. Imprevisível, ela lhe tocou os lábios com os seus e transformou o repouso das bocas em um beijo breve. Doce como o mel recém-extraído. Entorpecente como as plantas que os xamãs usam para entrar em contato com os deuses. Suave como o toque do veludo novo. Sutil como a brisa que derruba a última gota de orvalho pela manhã. Eterno como a vida, que renasce em cada nova muda da primavera.

Após o beijo, ela se foi sem ter dito uma palavra. Voou para longe e se perdeu no horizonte, onde o sol já se punha e Tomás nem notara. Ele ficou sentado ali por mais algum tempo, todavia, analisando a veracidade de tudo aquilo até que o coração diminuísse o ritmo alucinante em que estava e as pernas voltassem a responder. Até hoje, é o único na região que torce para que cada nuvem escura de chuva que se aproxima traga uma tempestade torrencial.