– Moço, escreve alguma coisa para mim?

Felipe levantou os olhos e observou a menina que falara a frase acima.

– Hein, moço?! Escreve?

A garota não deveria ter mais do que 12 anos. Buscava de qualquer forma ter a atenção do rapaz, dentro de seu vestido de algodão cor de rosa, cabelo amarrado em trança, melissinha no pé e sentada sobre sua bola gigante, dessas que vendem em parque.

– Como assim?! – indagou ele, sendo as únicas palavras que lhe vieram à mente.

– Olha, já dei algumas voltas no parque e em todas te vi aí curvado, com a cara vidrada no caderno do seu colo e o lápis rabiscando muito! É óbvio que você está escrevendo pra alguém! Então eu quero que você escreva algo pra mim também!

– Menina, onde estão seus pais?

– Ah, por aí… Mas não muda de assunto: vai escrever ou não?

– Ué, eu não posso estar fazendo conta?

– Não com essa cara de bobo. Você estaria mais sério se estivesse fazendo conta! Olha, eu te ajudo: meu nome é Jéssica e adoro coxinha. Pronto! Escreve algo com isso pra mim…

– Qualquer coisa?

– Isso! Qualquer coisa! Desde que não seja pra me ofender, né?!

– Faz o seguinte: vai dar mais uma volta e te entrego quando você reaparecer. Mas não vale ficar escondida me olhando! Eu vou saber se você estiver por aqui e não encosto o lápis no papel, eu juro!

– Tá bom, tá bom… Mas promete que não vai embora quando eu sair?

– Fica tranquila que você vai receber seu texto…

– Combinado! – e, como se fosse gente grande, ela estendeu a mão pequena e dos dedos finos. Felipe entendeu que aquilo era uma tentativa estranha de sugerir uma aperto de mão e complementou o cumprimento.

Assim que a menina virou as costas e saiu caminhando e quicando a bola no chão, ele se pôs a escrever. De fato, ele era um cronista e tinha ido ao parque buscar inspiração para preencher seu espaço no jornal de terça-feira.

“Jéssica mexeu-se na cama sem abrir os olhos, em resposta ao início do soar do despertador. Por uma fração de segundos, acreditou que esse movimento enganaria o aparelho e faria o barulho cessar. Como ele continuou sua melodia insistente, ela sentou-se na cama e o desligou, dando-se por acordada somente nesse instante.

Como de costume, foi tirando o pijama enquanto ligava para Beto e punha no viva-voz. Era ela que acordava o noivo, que até poderia fazê-lo sozinho, mas gostava do fato da moça fazer questão de querer agradá-lo assim. Palavras doces trocadas por menos de dois minutos e ela já estava embaixo do chuveiro pra tirar o cheiro de cama e o peso do sono do corpo.

Vestiu-se, perfumou-se e arrumou o cabelo como deu, já que precisava de um corte urgente, mas a agenda cheia e a distância até o cabeleireiro de confiança impediam uma providência perene.

Na cozinha, checou e completou a água e a ração de Mingau, Telha e Coxinha, o trio de gatos que lhe faziam companhia principalmente quando Beto viajava. Tomou seu próprio café da manhã, fumou o primeiro cigarro do dia (torcendo para que fosse o último) e caminhou lentamente até a garagem.

Dentro do carro, conferiu a agenda: Bauducco 9h, Abrinq 13h, Banco do Brasil 17h. Graças a Deus, suas palestras estavam sendo um sucesso! Através de fotos e muita irreverência, ela mostrava como uma menina que nasceu pobre, perdeu o pai cedo, cuidou do irmão traumatizado na infância por um grave acidente com fogo, trabalhou desde os 16 e nunca perdeu o bom humor conseguiu ser bem sucedida e montar a quarta maior empresa de vendas diretas do Brasil.

Checou no retrovisor interno: Maquiagem OK, sorriso lindo como sempre, auto-estima totalmente carregada e confiança em ordem. Ligou o veículo, engatou a primeira marcha e partiu para fazer desse dia mais um que valesse a pena ser vivido.”

Felipe sabia que para um jornal aquilo não serviria. O texto do periódico seria sobre o fato das pessoas darem mais importância ao selinho entre um jogador de futebol e seu amigo em um bar do que à chacina de inocentes na Síria ou ao corporativismo corrupto dos deputados que mantiveram o mandato de um colega acusado de lavagem de dinheiro, com evidências mais do que suficientes para provar sua culpa.

Contudo, esse texto serviria para a garota. Ele não tinha certeza se ela entenderia seu conteúdo por completo, ao menos não tão nova, não ainda… Mas preferia crer que um dia leria em um portal de notícias uma matéria comentando sobre mulheres perseverantes e reconheceria a foto dela, mesmo que tivesse passado bastante tempo.

Após arrancar as páginas do caderno onde havia escrito, Felipe as dobrou e enfiou em um vinco do banco do parque. Escreveu bem grande “JÉSSICA, TERMINEI! UM ABRAÇO, FELIPE”, de forma que ela pudesse reconhecer o material quando o visse sobre o banco.

Certo de que ela não o via, ele partiu discretamente. Acendeu seu cigarro e foi pra casa digitar o texto político que garantiria o sustento da semana.