Alexandre saiu de casa revoltado. Entrou no carro, bateu a porta, ligou-o com ferocidade e partiu cantando pneus. “Como aquela vaca pode fazer isso comigo? Como ela foi capaz, depois de tudo o que passamos juntos e o que deixei pra trás por ela?!”. As ruas eram rotas de fuga para ele agora. Sem perceber, Alexandre descontava toda sua raiva nos pedais, acelerando e freando sem medir as forças; o carro andando e parando em soluços e espasmos, abrindo caminho em ziguezague como um bêbado o faz ao sair do bar.

Repentinamente, avistou em cima da hora um semáforo vermelho. Brecou, cantou pneu, chegou a pensar que havia perdido o controle do carro… Parou sobre a faixa de pedestres. Entre a fúria e o susto, avistou na calçada um rapaz jovem que carregava uma caixa de chocolates e reprovava a cena, balançando a cabeça lentamente com um “não”.

Breno estava em um dia ruim. Acordou com a mãe brigando feio na cozinha com o atual namorado. Saiu de casa sem tomar café da manhã, para escapar o quanto antes daquele inferno. Na pressa, teve tempo apenas de colocar a roupa de trabalho, apanhar seus produtos e deixar o barraco de apenas um quarto em que morava com mais três irmãos, além do casal briguento. Lembrou-se apenas de pedir a benção da mãe em voz alta logo antes de bater a porta da rua. Não ouviu a resposta.

O rapaz caminhou alguns quilômetros até a avenida em que ficava o semáforo onde vendia seus chocolates. O sol forte começava a judiá-lo desde cedo, flagelo que duraria até o poente. Não que ele abandonasse o ponto logo após, porque também faturava bem com o trânsito do fim do dia.

Mais de duas horas haviam se passado e apenas quatro unidades vendidas, sendo que três foram pra mesma senhora que buscava agradar os netos no banco de trás. Definitivamente, Breno estava em um dia ruim. O marasmo, contudo, foi sacudido quando um carro elegante e em alta velocidade freou bruscamente sob a luz vermelha do semáforo. Todo mundo observou o sedã patinar e quase bater. Breno fez questão de olhar para o motorista e demonstrar sua indignação com o ocorrido. O motorista, nitidamente assustado, fechou o semblante ao vê-lo e partiu acelerado quando a luz verde abriu-lhe o caminho.

De súbito, um silvo longo avisou-lhe da chegada da agente de trânsito que cuidava da região após as 10 h da manhã. Ele nunca perguntou seu nome, e ela nunca o dissera, mas ele fazia questão de dar-lhe todo dia uma das barras que vendia. Ela acenava e o cumprimentava com um aperto de mão informal. O toque da seda daquelas mãos justificavam tudo o que aguentava em seu dia-a-dia.

Cláudia olhou-se no espelho: estava gorda. Sentia-se gorda. Não que aquele uniforme ridículo ajudasse em alguma coisa, mas era a forma que ela havia encontrado para levantar a verba necessária para sua tão sonhada lipo. Faria na barriga apenas; no bumbum bastavam algumas sessões de drenagem linfática, pensava ela. “E que mulher não tem um pouquinho de celulite, não é?!”.

A van buzinou em sua porta. Seu marido odiava que ela fosse trabalhar em um veículo cheio de homens, mas não via a cena, uma vez que saía antes de clarear o dia. “E ele vai engolir a língua quando eu ficar gostosa juntando o dinheirinho desse emprego.” Cláudia entrou na van, desejou bom dia aos presentes e eles partiram.

Seu ponto de trabalho era o encontro da Av. Getúlio Vargas com a Rua Frei Damião. Cruzamento movimentado, mas com poucas ocorrências. Ela sabia que estava lá apenas para evitar que os carros fechassem o cruzamento, entretanto se divertia em ver pessoas disfarçando quando vistas falando ao celular, puxando o cinto de segurança rapidamente para afivelá-lo, colando na traseira de outro para esconder a placa ao burlar o rodízio…

Seu sonho de criança era ser bailarina. Fora rejeitada de alguns grupos de dança quando adolescente porque mal cabia em um collant sem parecer uma orca encalhada. Isso não a abalou de forma alguma: exibia sua graça e sua leveza de espírito ao conduzir o trânsito naquele ponto. Um silvo de seu apito e um braço a puxar o trânsito; dois silvos e um giro, terminando com a mão erguida, para segurar a vinda de carros em um dos sentidos e liberar a do outro; os motores, buzinas e pneus eram sua orquestra, os motoristas, seus espectadores. A gratidão da plateia vinha em forma de uma barra de chocolate que recebia todo dia de um vendedor ambulante. O toque mágico daquele dia veio com o pedido sorridente de auxílio vindo de um cadeirante, que queria atravessar aquele caos. Cumpriu sua missão com maestria, dançando enquanto empurrava o rapaz de um lado ao outro da avenida.

Padre Daniel saiu de sua igreja aquele dia com uma missão diferente: ir à paróquia de São Nicolau rezar a missa dos enfermos. Tarefa simples, dado que uma linha de ônibus ligava os dois templos, se não fosse a companheira que Deus lhe dera aos 18 anos: uma cadeira de rodas. A queda de um cavalo arisco tirou-lhe os movimentos das pernas, mas o conduziu à sua vocação, em uma aparição no hospital em que o próprio Senhor o chamava para evangelizar em troca do fim de suas dores e aflições.

Sendo assim, padre Daniel tinha que descer até a avenida, onde passava a linha de ônibus adaptada à sua condição, atravessar o bairro pelo caminho mais longo, descer na rua Frei Damião e empurrar sua parceira por mais de 500 m até a paróquia. Fazia todo esse esforço com sorriso nos lábios e olhava para cima sempre que um obstáculo maior parecia querer tirar-lhe da retidão dos cumprimentos da vontade divina. Sabia que Deus olhava de volta com afeto e dava-lhe forças para seguir.

Atravessar a avenida era sempre a parte mais difícil. Cruzamento disputado, carros e pedestres brigavam por passagem e, mesmo com o semáforo, a tarefa era árdua. A última vez que havia estado lá, há quase três anos, demorou mais de 15 minutos para conseguir cruzar pela faixa de pedestres. Lembrando-se disso, assim que desceu do ônibus o servo de Deus pôs-se a orar. Pediu que hoje a travessia fosse tranquila e rápida, se fosse da vontade Dele, mas estava disposto a enfrentar com respeito qualquer adversidade que pudesse aparecer.

Ao se aproximar da beirada da calçada, sorriu: haviam colocado uma pessoa para organizar a região. Deus a havia colocado lá! Não precisou nem pedir; a mulher soprou seu apito e, dançando feliz, tirou-lhe em instantes da pior parte do caminho. “Deus lhe abençoe!” – “Amém, meu amigo!”, respondeu a mulher, sem ter como saber que tratava com um padre. Carregando o mesmo sorriso que trazia desde o início da jornada, padre Daniel seguiu seu rumo, cantarolando um hino de louvor.