Ontem à noite eu conversei com Deus. Fazia muito tempo que não nos falávamos, dado que não faço uma oração sincera há pelo menos uns 7 anos. Só Ele mesmo sabe porque resolveu vir até mim, mas fato é que veio.
Foi em sonho, uma coisa meio psicodélica. Eu flutuava em um nada todo escuro. A sensação era de estar no mais profundo oceano, mas nem a respiração me era privada nem a pressão absurda do mergulho era sentida. De repente, um ponto de luz branca piscou e meu nome foi ouvido, pelo que respondi “Presente!”, piadinha infame que faço sempre que me chamam pelo nome.
– Você sabe quem sou, certo? – a voz era masculina, intensa sem ser tão grave. Não parecia em nada como aquelas vozes onipresentes e reverberantes de Deus dos filmes de Hollywood. Lembrava um Willian Bonner ou um Pedro Bial. A cada sílaba pronunciada, pontos difusos de azul bem claro piscavam aqui e acolá, como um sonho psicodélico, uma festa de fogos de artifício desfocada e sem o barulho das explosões.
– Você é Deus… – Não sei como sabia disso, mas afirmei sem receio de estar errado. – Por acaso eu morri? E me fodi, já que você existe?
Realmente essa possibilidade me fez gelar a espinha. Aquela sensação de derrota iminente, a frustação de estar errado e o medo petrificante de pagar por isso por toda a eternidade.
– Não, meu filho, você não morreu. – As luzes piscantes migraram do azul para o verde. – Entrei em seu sonho para conversarmos um pouco.
A sensação de formigamento permaneceu, mas o temor foi embora. A máquina racional do meu cérebro deu partida no motor e começou a rodar em paralelo: conversa em sonho com Deus ou devaneio onírico? Ele continuou:
– Em primeiro lugar, peço que guarde essas palavras mais chulas para você. Eu sei que tem a capacidade de conversar sem palavrões, além de se expressar muito bem.
– Desculpe…
– Bom, eu queria ouvir diretamente de você e, mais do que isso, fazê-lo se ouvir respondendo à minha questão: por que você perdeu a crença em mim? – o verde suave começou a dar lugar a um amarelo intenso, os círculos de luz pipocando em maior quantidade, maior frequência e com tamanhos maiores na completa escuridão que me permeava. Eu comecei a tremer, mas não era medo nem frio; talvez nervosismo.
– O Deus que me apresentaram não faz sentido.
– E Deus precisa fazer sentido?
– Desde que a gente começou a deixar o misticismo de lado e abraçar o racionalismo, depois da Idade Média, a gente deixou para trás aqueles que nos dominavam pela ignorância. Então, sim! Tudo precisa fazer sentido, até Deus, para que a gente não acabe submissa a esses oportunistas novamente.
– E você conhece Deus?
– Sim! Não! Aliás, acho que não. O Deus que tentaram me empurrar, e eu abracei por um bom tempo, absolutamente não poderia existir. Rancoroso, invejoso, tendencioso, incompleto, ditador, vaidoso, machista… Ele era tudo aquilo que me pediam para não ser. Esse Deus, para mim, não existe. E se você…, se o Senhor é isso tudo, então fico feliz em não acreditar e continuo torcendo pra acordar e pensar que tudo não passou de uma brincadeira do meu cérebro comigo.
– Hahahaha… – A risada encheu meus ouvidos e parecia tão gostosa que quase ri junto. Tenho certeza que ao menos um sorriso se fez presente em minha boca. Os pontos iluminados pareciam pequenas estrelas cor-de-rosa piscando em um céu de lua nova. – Não, eu não sou essa aberração que Josias e seus descendentes hebreus colocaram no Velho Testamento e que os discípulos de Paulo colocaram no Novo. Nem sou o que os fundamentalistas islâmicos chamam de Allah. Não é em meu nome que seres humanos são desrespeitados, apesar de muitos crerem que é. Eu sou Deus de Amor.
– Certo, certo… Então onde consigo saber como seguir seus ensinamentos?
– Não se faça de estúpido! – a voz ergueu levemente o tom, e o rosa virou laranja intenso. – Você é muito inteligente, mas eu sou infinitamente mais. Você sabe o que fazer! Os Dez Mandamentos fui eu que dei a Moisés, apesar de ele ter chegado a você já bastante alterado. Os que eu disse através de Jesus, “ame a Deus sobre todas as coisas e ame ao próximo com a si mesmo”, também continua válido. Você conhece muito pouco das palavras do Corão, mas lá também há recomendações semelhantes. Todas as religiões têm isso como base e espinha dorsal: o respeito ao Criador e o respeito às pessoas a sua volta. Isso é encontrado mesmo naquelas que lhe são pouco familiares, como as da espiritualidade do extremo Oriente, as animistas ou as tribais.
– Me desculpe. É mais forte do que eu fazer essas provocações quando o assunto é religião e acabei por me esquecer com quem estou falando.
E Deus insistiu:
– Mas você já sabia de tudo isso que te falei… – A cor das luzes voltou a tons pastéis – Me diga, do fundo do coração, por que você parou de acreditar em mim?
– Sinceramente? A conta “fecha” sem o Senhor. A Ciência explica, ou está no caminho para explicar, nossa origem e os fenômenos a nossa volta. Ao menos temos o “como fazer”, sendo que cada resposta virá com o tempo. Acredito ter maturidade suficiente para separar o que é “bom” e o que é “ruim” para mim, e tenho que confessar que às vezes até me desvio intencionalmente do ensinamento de Cristo (ensinamento do Senhor, no caso). Não há evidência de espírito, alma, vida após a morte e similares e esse sonho pode ser só uma piração da minha cabeça. Eu não quero ofender, mas minha pergunta é de outra forma: “Por que eu deveria acreditar que o Senhor existe?”.
Assim que terminei a frase, queria ter encontrado as últimas palavras ainda navegando pelo ar a minha frente para eu as ter engolido de volta. A entonação saiu petulante, quase desafiadora, mas não foi essa a intenção. Na realidade, a revolta exteriorizada refletia a gana de saber o “sentido da vida” que o ser humano busca desde que começou a raciocinar sobre si e deixou de ser um ente de puro instinto.
Já estava esperando uma saraivada de explosões vermelhas e roxas, vociferações sobre questionar os desígnios de Deus e meias explicações que, no final, sempre desviam o foco da pergunta sem respondê-la. Para meu espanto, não foi isso que aconteceu. Houve silêncio por um tempo. Por um longo tempo, ou pelo menos assim me pareceu. Um suspiro, e uma luz difusa branca acendeu e apagou lentamente, no mesmo ritmo da inspiração e da expiração ouvidas.
– Você tem alma, eu fui eu que a dei. Ela é uma pequena porção de mim mesmo, e é só com ela que você é capaz de vislumbrar a beleza da Natureza, o que pra você são os números e a ciência, mas para alguns é uma paisagem, para outros uma pintura, para terceiros uma música. É por causa da alma que a Humanidade evoluiu, e é por causa dela que os seres humanos são intelectualmente superiores aos outros animais.
E Deus continuou:
– Sendo uma parte de mim, a alma deve voltar para mim. Mas eu só aceito recebê-la quando sair do seu corpo se estiver do jeito que a dei: pura e limpa. Isso em si não é a parte que te prejudica, meu filho, porque você já entendeu que não é preciso uma religião para chegar até mim, apenas atitudes. O grande ponto é que não há comunhão com o desconhecido. Se você não me reconhecer, seja com o nome que for, não poderemos vir a ser um só.
– E o que acontece após a morte? Tanto com os que se reintegram ao senhor quanto com os que não se reintegram?
– Rapaz, você é realmente muito curioso… Gosto assim! Só tome cuidado em saber interpretar a resposta. – As cores começaram a variar, os pontos de luz aparecendo em todas direções, alguns até formando arcos ao se mexerem. – As almas que voltam a mim desaparecem como indivíduos, mas alcançam a glória de serem parte da perfeição. Aquelas que não voltam, vivem para sempre como espectadoras do Universo. Esqueça almas penadas na Terra ou fogo do inferno. Perdidas no espaço, elas vagam à deriva em algum ponto de alguma galáxia ou no espaço entre elas. Viram energia difusa e ficam eternamente sem saber ao certo onde estão e o que são.
Completando, Ele disse:
– Você só poderá chegar a mim se me reconhecer como seu criador. Eu sei que te incomodam todas as concepções de Deus patriarcal, apesar de paternalista, que você aprendeu desde cedo. Desconstrua isso assim como desconstruiu todas as outras ideias que te seguraram por tanto tempo; pense em mim como alguém que te deu o poder e a capacidade de fazer tudo de brilhante que você é capaz, desde uma conta matemática até escrever um texto. Assim que admitir isso, entenderá o que é agradecer à noite ao dormir e de manhã cedo ao acordar por ser quem você é e como é.
Eu parei. Com o fim do pequeno discurso e da revolução iluminada alucinante, fiquei pairando no vazio e no silêncio refletindo. Eram tantas dúvidas e tão poucas respostas que não sabia colocar ordem nos questionamentos. A sensação de confusão me fez esquecer o que é falar, o que é raciocinar, o que é imaginar, o que é ser humano. Regredi a um vegetal por instantes tão longos quanto o último piscar de olhos de quem dá adeus à vida.
– É hora de acordar, meu filho.
Abri os olhos e estava sozinho no quarto, absolutamente ensopado de suor. O coração fazia sua fanfarra particular, quase audível fora do peito. Eu não respirava, arfava como um cachorro cansado e com sede. À meia-luz do quarto percebi que ainda era madrugada, mas meu sono havia saltado pelo janela do 21º andar e me deixado apenas com a sensação desconfortável de tontura que o contato com Deus provocou. Ou causado apenas pelo excesso de adrenalina no sangue…