Prezado,
Já que estamos de relações cortadas, não vejo outra forma de me comunicar a não ser através desta missiva, pelo que a faço em aberto por falta de endereço de destinatário conhecido para envio.
Antes de mais nada, quero dizer que o considero um ser onipotente infantiloide e irresponsável, um ególatra, um sádico, um ditador. Antes de ser um despejo de insultos despropositados, trata-se de uma constatação, e me darei o trabalho de explanar cada uma das palavras que uso para o definir na frase anterior.
A mim, parece razoável imaginar o que leva uma entidade de poder infinito a criar o universo. Seria algo como o que chamamos de tédio, acometido após o tempo infinito que se passou até você decidir que deveria ter algo para fazer, para acompanhar, para o distrair. Desenhar meticulosamente como tudo se dará, iniciar o processo e observar seu o desenvolvimento. O princípio, a faísca e daí a expansão. Todo o vazio ser povoado de espaço, e este de matéria e energia. As ordenações hierárquicas astronômicas: planetas, estrelas, sistemas estelares, aglomerados, galáxias, clusters. O mesmo se dando em escala físico-química: os elementos, as moléculas, os materiais, as rochas e os gases. Um belo trabalho, devo reconhecer, sem medo de cair em contradição.
Não está claro para nós, de forma indubitável, se foi na fase de planejamento ou depois de o projeto em andamento, mas você decidiu que a vida deveria fazer parte desse enorme devaneio sensorial que chamamos de universo. Criações que são capazes de ativamente parasitar recursos do entorno para se multiplicar. Vida.
Só que a vida é finita e perecível, além de extremamente frágil. Sendo onipotente, por que a fez ser tão fugaz? Qualquer ser vivo é capaz de tirar a vida de outro com esforço relativamente pequeno. Alguns seres vivos, inclusive, sobrevivem e cumprem seu papel de extrair recursos do entorno exclusivamente encerrando a vida de outros seres vivos. Essa violência o apraz? O satisfaz? Ou simplesmente o distrai, da mesma forma que uma supernova sendo gerada, ou um buraco negro aspirando material em seu entorno?
Já ouvi que a vida foi dádiva sua, que ela não pertence ao ser vivo que a usufrui, sendo direito seu tirá-la quando acredita que é o momento. Um bom ponto, se formos excluir a raça humana do horizonte de argumentação e ignorar que qualquer outro ser vivo não possui consciência. Prevalece a teoria do playground em escala incomensurável e me permite confirmar a alcunha de infantiloide. Se por acaso esse argumento não se firmar, então vejo um erro crasso no design da criação, e chamá-lo de irresponsável dá conta de substituir o adjetivo anterior com plenitude.
Tragamos à vista a raça humana agora, para completar a defesa que faço dos meus argumentos. Somos seres vivos, como todos os outros, igualmente frágeis, porém dotados de consciência. Somos capazes de perceber você. E tudo me leva a crer que era essa a intenção, ou novamente retornaremos ao ponto do erro na criação, e ao “irresponsável”. A próxima pergunta, então, passa a ser: qual o motivo de percebermos você? Você quer essa atenção? Você quer que saibamos do seu imenso poder? Você quer ser ADORADO pelo seu imenso poder?
Posso estar enganado na condução das perguntas, intencionalmente tendenciosas a uma resposta “sim” ao final. Contudo, fiz assim porque essa é a principal linha de raciocínio que ouço para a resposta à primeira das perguntas, que é aberta. Desta forma, me ponho a indagar: por que essa fixação na adoração? Por que a necessidade de seres conscientes da sua existência que declaradamente se curvem a você em adoração à sua capacidade infinita? Até ter uma resposta melhor, chego à egolatria denunciada inicialmente. E te desprezo por ser tão poderoso e tão mesquinho ao mesmo tempo.
Se a ameaça constante ao frágil fio vital que nos mantém por aqui fosse a única razão do meu desabafo, já teríamos caminhado para a conclusão. Entretanto, não basta criar seres conscientes que devem o adorar. Esses seres, nós, passamos por privações e por dor. Por angústias. Por desesperos. Por medo. Parabéns, inclusive, pela depressão. Excelente toque para que, além do meio agressivo em que vivemos, que nos ameaça o tempo todo, podemos também ser nossos próprios algozes, encerrando a tão sagrada vida que você nos deu sem maiores dificuldades. Aqui, eu me recuso a sequer cogitar os argumentos que contrapõe esta visão. Apenas o sadismo me responde a contento. A destituição completa dos prazeres de alguém não faz com que seus sentimentos para com você sejam mais puros e genuínos. Até o inquisidor mais estúpido sabe que a pessoa que agoniza se sujeita a qualquer situação que lhe diminua o sofrimento.
Por fim, temos as famigeradas exigências comportamentais. Em algumas leituras feitas pelos que te professam, tratam-se de regras rígidas e inflexíveis. Em outras, sugestões subjetivas que, quando bem interpretadas, levam a uma convivência entre seres humanos agradável e coesa, reduzindo as potenciais investidas contra a existência. De uma forma ou de outra, seja por penas eternas no “pós-vida” ou por ciclos de reciclagem, em que cada volta é um período no planeta passando por tudo novamente até que se aprenda a seguir conforme você deseja, há uma legislação divina não declarada a ser seguida, sob o risco de mais dor e padecimento. No corpo ou na pretensa alma. Para quê? Qual o ponto? Atingir a plenitude? Para quê, novamente? Para sermos mais próximos de você? Ou seja, somos gerados por você para sermos como crianças testadas a todos os momentos, sob o olhar rígido do tutor, até que se aprenda a ser como ele? Concebidas com possibilidade de serem punidas dolorosamente por desvios? Para, no final, virarmos esse ser tão ensimesmado que você é? Você acaba de levar ao último grau o sonho de todo ditador.
Percebe como não estou sendo leviano aqui? Não vim espernear e xingar, como um mal-educado raivoso que reage ao redor com injúrias aleatórias para simplesmente espalhar o rancor que carrega dentro de si. Vim comunicar a você que, sob risco de danação eterna, a começar com este exato momento em que escrevo, ou podendo regressar para esta zona de flagelo infinitas vezes, não me curvo. Brado como o pequeno subjugado, cuja atitude não muda a rota das coisas, mas que se atém às próprias convicções.
E se você é tão onipotente assim, fico aguardando, pelo tempo de vida que você me deu, que você envie uma mensagem (mesmo que através de alguém) sem rodeios, metáforas e explicações abstratas de interpretações mil, que desmonte os pontos que defendo neste texto. Caso contrário, pelo tempo eterno que você tem, haverá de existir ao menos um ser do qual você dotou de animação e consciência que não dará razão a um ditador sádico, ególatra, irresponsável e infantiloide, apesar de todo o poder que detém.
Com agravo,
Sua criatura