Cada vez que a brasa do cigarro brilhava com mais intensidade, o desejo de Abel de queimar suas angústias e desesperos era puxado para seus pulmões e soprado com indiferença no ar. A esperança vã de que a fumaça que subia levasse embora suas memórias era o único motor que mantinha aquele senhor vivo: sem família que se importasse, viúvo, aposentado, manco de uma das pernas e sem amigos vivos.

Sentado no banco da praça distante uma dezena de quadras de sua casa, ele mantinha a mesma postura todas as vezes em que torcia para que um câncer de pulmão que nunca o acometeu aparecesse. As pernas finas e magras ficavam cruzadas, os cotovelos apoiados sobre elas e a cabeça baixa, mantendo o cigarro curiosamente acima desse conjunto. Olhando com calma, a cena aparentava um ser dentro de sua concha, com uma pequena chaminé alertando ao entorno da existência de vida naquela estátua.

Todo dia ao sair de casa, Abel se deparava com a banca de jornal onde sua mulher foi atropelada por um motorista bêbado; e toda vez ele era capaz de ouvir os pneus cantando que o chamaram para a rua, apenas para ver seu amor chorando entre as ferragens, ciente de que não sobreviveria. Ela morreu segurando sua mão.

Na primeira esquina a caminho do seu ponto de meditação tabagista, ele passava pela entrada do Hospital Santo André, destino final de seus últimos companheiros de partidas de xadrez e damas. Entre ataques cardíacos, derrames e complicações de cirurgias de emergências, um a um Abel perdeu os amigos do bairro, alguns da época da faculdade, outros da do exército.

Assim que chegava à avenida, via o monumento em homenagem aos heróis de guerra e podia se lembrar claramente do porquê de usar aquela bengala desde cedo. Naquele tempo, poucos países estavam envolvidos ainda e as trincheiras não eram a constante. Os tiroteios em campo aberto ditavam o ritmo das batalhas. Nesse cenário de desespero, uma bala sem endereço certo rasgou seu joelho com menos de três meses de campanha. Teve sorte de não terem amputado a perna inteira, mesmo que ele só tenha cuidado do ferimento apropriadamente dois dias depois do ocorrido. Voltou para casa com uma estrela de ouro no peito e meio soldo de pensão.

Antes de parar na padaria e comprar o maço do dia, Abel ainda desviava uma centena de metros do caminho para não ter que cruzar com o asilo em que seus filhos insistiam que ele internasse sua mulher, mãe deles. O Alzheimer avançara a passos largos nos últimos dois meses de vida dela, e o pai foi culpado por ter deixado a senhora sair de casa no dia do acidente. Nenhum dos quatro voltou a visitar Abel, tendo eles trocado olhares pela última vez no enterro de sua esposa.

O último cigarro daquele dia guardava não mais do que cinco minutos de distração antes de se extinguir. Abel fitou atentamente como a brasa transformava tudo em cinzas e só pôde ver sua vida se repetir naquele bastão branco. Levou-o à boca, puxou a fumaça, soprou, arremessou a bituca ao chão e partiu com sua bengala de volta para sua casa. Antes do segundo passo, respirou o mais fundo que pode em busca de uma tosse acentuada, uma dor no peito, tontura ou algo que o valha. Nada… Amanhã tentaria novamente.