Por que eu uso beta-B, doutor? Ah, essa é fácil. Aqui na clínica de reabilitação todo mundo já me fez essa pergunta. Você não leu a minha ficha, leu? Acredito que não. Mas tudo bem, repetir a história faz passar meu tempo neste limbo maldito em que me enfiaram.

Se você enxergasse algo que mais ninguém vê, mas para você é tão real quanto todas as outras coisas a sua volta, como você reagiria? Contaria para mais alguém? Guardaria em segredo? E se essas visões te passassem informações cruciais, questões de vida ou morte para as demais pessoas? Ainda assim guardaria para si?

Deve estar me achando paranoico agora, né? É o que todos dizem. Eu vejo cores que ninguém mais vê. Eu vejo números e formas sobre as cabeças, como névoa permanente, indicando a hora e a forma da morte de cada um. Eu ouço ideias e sinto intenções. Eu percebo nos olhares quem machucou ou vai machucar alguém. Eu ouço a voz do algoz e da vítima quando cruzo com algum deles na rua. Moradores de rua viciados compartilham seus delírios comigo só de nos aproximarmos. Mandantes de assassinatos cheiram a sangue seco e pus. Mulheres que apanham dos maridos, filhos abusados pelos pais, antigas vítimas de sequestros, assaltos, torturas… Eu atraio todos, como um ímã de profanações, e suas súplicas enchem minha boca de um gosto amargo, que persiste por horas. Guardar segredo sobre esse tipo de coisa não mantém a consciência em dia quando o que você absorveu sobre a pessoa vem à tona depois de um tempo.

Eu já tentei alertar a polícia de tudo isso, e como consequência sou suspeito de dois crimes que não cometi. Estou tranquilo quanto a isso porque tenho álibis fortes que me tiram das cenas dos crimes, mas não tenho mais nenhuma apoio oficial para ajudar aqueles que, intencionalmente ou não (não sei dizer), dividem seu sofrimento comigo.

Agora tente pegar um metrô ou um ônibus nessa condição. Experimente entrar em um restaurante, dividir um elevador cheio, ir ao centro da cidade. Vá dormir enquanto ouve o vizinho de cima pensando no plano de como matar o chefe. Sinta o cheiro ácido e enjoativo do casal de baixo, que se odeia, se trai mutuamente escondido e se suporta simplesmente porque nenhum quer pagar pensão para o outro por conta do filho de 6 anos de idade.

Só tem uma resposta, doutor: beta-B. O mundo fica acinzentado e silencioso, os cheiros somem e o tempo passa devagar. As vozes cessam, as visões param, nada mais tem gosto. A vida fica comum e pálida. Contudo, é mais suportável de ser vivida.

O mais curioso dessa conjuntura é que só vim parar aqui porque a comercialização de beta-B é proibida, sendo que faz mal apenas a mim mesmo (apesar de eu considerar um bem frente ao que tenho que enfrentar sem ele). Vocês me dão essas pílulas fraquinhas, achando que estão ajudando, só que me têm feito passar o tempo todo confuso entre o que é realidade, o que é alucinação causada por essas merdas e o que é resquício das sensações originais que não foram embora.

Por exemplo, doutor, os números e as formas sobre a sua cabeça estão aí. Quer saber o momento e o modo como você vai passar desta pra uma melhor? Não te conto; você não aguentaria viver com essa informação. Não sem beta-B (que ironia!).

O que eu queria mesmo, doutor, era não ver além do que todo mundo vê.