O jantar perfeito acontecia naquela casa. Rubem, dono da casa e pai da família, sentava-se à ponta da mesa e contemplava o cenário que batalhara por anos para conseguir. À sua direita estava sua mulher, Sara, mãe de seus três filhos: Benjamim, Ester e Rebeca. Os jovens sentavam-se ao lado oposto de sua mãe, também próximos ao pai. Voltando à direita, após Sara, completavam a mesa a mãe desta, seguida da mãe de Rubem e, na outra ponta e de frente com este, Jacó, seu pai.

Há três ou quatro meses que esta ceia vinha acontecendo aos sábados à noite, sempre com a mesma formação. A cada garfada, o patriarca sorria de orgulho, mas discretamente. Todos muito bem vestidos, comida farta, cheirosa e vistosa (sem citar saborosa, obviamente). O lustre novo ao centro de sala de jantar iluminava a celebração.

Rubem não nasceu pobre. Tampouco teve dinheiro para esbanjar quando era criança, mas nunca passou fome, precisou usar roupas furadas ou tênis apertados. Tanto a infância quanto a juventude foi da típica classe média paulistana. Mas isso não bastou para ele: inteligente, perspicaz, de raciocínio rápido e com visão comercial apurada, tratou logo de abrir um pequeno comércio de coisas para o lar em uma garagem alugada. Vendia desde lençóis a chaleiras, de chuveiros elétricos a prateleiras, de facas que não perdem o fio a abajures.

Desse início até as 26 lojas que tem hoje espalhadas pelo estado, muito dedicação foi aplicada. Rubem passou noites em claro, deixou de viajar, submeteu-se a duas cirurgias (úlcera nervosa e ponte de safena), arrumou inimizades, construiu seu pequeno império. A mulher compra o que quer a hora que quer (mas tem a austeridade do marido, com quem dividiu os momentos mais difíceis dos negócios). Os filhos estudam em ótimas escolas; Rebeca, a mais velha, já fez nove meses de intercâmbio na Austrália antes de ir para a faculdade (pública, sem cursinho). Seus dois irmãos já tem a viagem programada: Ester irá para a Inglaterra e Benjamim pediu para ir estudar em Israel.

Aquela solenidade, contudo, foi bruscamente interrompida com o romper da flatulência barulhenta e odorosa do Sr. Jacó. O idoso riu alto; aliás, gargalhou de alegria verdadeira. Rubem abaixou a cabeça em reprovação. Sua mulher corou a face, mas não parou o ato de levar o talher com comida à boca com naturalidade. Os mais jovens seguraram o riso. D. Raquel, mãe de Sara, levou o guardanapo de seda ao rosto tentado discretamente suportar o cheiro. D. Rute, esposa de Jacó, travou em uma mistura de vergonha e pena.

Há cinco anos, depois de se perder em caminhadas pelo bairro e aparentar confusão mental constante, Jacó fora diagnosticado com mal de Alzheimer. Infelizmente, nem todo o dinheiro de Rubem poderia fazer alguma coisa por seu pai, a não ser tentar lhe trazer conforto e sossego enquanto a degeneração progressiva levava embora sua conexão com a realidade. Um enfermeiro acompanhava Jacó a todo o momento, exceto nestas ceias de sábado à noite, que Rubem fazia questão de serem somente entre familiares.

“Mãe, leve meu pai ao quarto, por favor. Acenda a luz, deixe-o lá na companhia da televisão ou do rádio e retorne para terminarmos nossa refeição.”

Com os olhos marejados, foi difícil para D. Rute represar a correnteza que queria escorrer rosto abaixo. Ainda assim, apesar dos esforços, uma gota rompeu a vontade da mulher e passeou vagarosamente pelo seu rosto maquiado e de poucas rugas para uma pessoa na sua idade. Levantou-se, pôs-se atrás da cadeira de rodas do marido e o encaminhou conforme o desejo de seu filho, o único homem que o casal tivera.

No rosto dos três mais novos não havia mais um sorriso contido. Benjamim olhava para seu prato de comida enquanto cutucava um pedaço do salmão com o garfo. A exemplo da avó, Ester batalhava para conter as lágrimas. Rebeca, contudo, encarava seu pai como se quisesse enxergar sua alma.

Apesar de perceber o movimento da filha, o pai não devolvia o olhar. Não por medo, não por vergonha, mas para não incentivar sua insubordinação. Depois de tudo o que ele lhe propiciara, Rubem via que ela voltara diferente da Austrália: desobediente, contestadora, rebelde! Já não era a primeira vez que ela lhe dirigia o olhar desta forma.

“Ótimo, já chega!” O tom de voz dele permanecia calmo. “Suba para seu quarto e saia somente amanhã.” Rebeca não protestou, não esbravejou, nem sequer soltou alguma frase de efeito e cheia de ironia, como lhe era costumeiro nessas situações. Ela só pôs-se de pé, ainda fitando o pai, pisou sobre a cadeira e subiu na mesa. O ar tomava densidade, a respiração de todos era ouvida sem esforço, os batimentos do coração eram a única outra coisa que emitiam sons naquele momento.

Ela permaneceu o tempo todo com os olhos grudados em Rubem. Abaixando-se o menos possível, tirou os sapatos dos pés e os jogou dentro da panela de arroz. Levou a mão às costas e o puxou o zíper do vestido até embaixo. Tirou-o. Era a primeira vez que ficava com tão pouca roupa na frente de seu pai desde que deixara as fraldas. Com o mesmo desdém desde o começo, tirou a meia-calça (que foi para dentro do prato do pai) e o sutiã (pendurado no lustre).

Ninguém se mexia. Com exceção de Rubem, todos olhavam para baixo. Ele fitava a filha no fundo dos olhos, devolvendo com ira o abuso que sua filha cometia naquele exato instante. Rebeca olhava de volta da mesma forma.

Por fim, tirou a calcinha e a arremessou ao chão. Apanhou um gordo pedaço de carne de dentro da travessa, desceu da mesa e se pôs de frente à parede mais próxima. Fazendo de tinta o molho e o sangue da porção de comida que trazia na mão, desenhou o maior que pôde uma enorme suástica. Voltou-se para Rubem, arrancou com os dentes um pedaço de seu pincel improvisado, largou o resto no chão e, mastigando, seguiu tranquilamente pelo corredor em direção a seu quarto.

Rubem mirou o símbolo nazista por alguns segundos, imóvel. Trocou o semblante belicoso pelo de indiferença com uma rapidez maior que a de costume. Fez suas orações e se pronunciou aos que ainda estavam presentes:

“Obrigado a todos pela companhia. Vamos dormir agora. Sara, peça a alguém que limpe essa desordem.” Foi para seu quarto ocultando o quanto conseguiu a tremedeira que lhe acometera.